A Mitologia do Músico

Clique aqui para ver o trabalho (em PDF)

Comentários sobre o trabalho em si

No meu último semestre da UnB, eu decidi pegar uma disciplina do Departamento de Filosofia com um amigo (que eventualmente desistiu dela), sobre mitos (muito bem nomeada Mito e Filosofia). Obviamente, falávamos não de mitos no sentido usual de "invenção" ou "fantasia", mas no sentido tradicional de narrativas verdadeiras e vividas por um povo. Uma "história sagrada; ele relata um acontecimento ocorrido no tempo primordial, o tempo fabuloso do 'princípio'", como Mircea Eliade coloca em Mito e Realidade.

Eu não entro muito no aspecto de validez dos mitos porque, honestamente, me parece autoevidente que um mito é "verdadeiro" porque explica um fenômeno. A "falta de racionalidade" dos mitos só é uma crítica que faz sentido quando estamos de fora do universo no qual ele é válido, e a explicação que os mitos, por exemplo, cosmogônicos dão é perfeitamente racional se você partir da hipótese que os deuses agem de acordo com o "postulado". Não é necessariamente, ou exatamente, uma questão de "postular", afinal tradições podem surgir — e geralmente surgem — de maneira orgânica/espontânea.

Por causa disso, vou fazer uma pequena explicação da motivação do trabalho aqui.

Uma breve defesa do pensamento mítico em detrimento do científico

O embate com a ciência é uma questão muito mais delicada e cheia de nuances do que o discurso público geralmente se faz. A ciência não é uma ferramenta que se autoalimenta de maneira linear e consegue dar respostas para tudo (Schopenhauer é um bom crítico desse ponto, mas filósofos da ciência no século XX também argumentaram isso). Thomas Kuhn, historiador da ciência, constatou (não foi nem uma hipótese) que os grandes saltos científicos são, na verdade, anticientíficos. Existem exemplos tradicionais, como a descoberta da penicilina ou a suposição de Planck da quantização da energia (que, por consenso científico, era uma onda por definição contínua), mas existem vários outros. Também argumentou contra essa visão cientificista o filósofo Paul Feyerabend, que se autodenominava "anarquista epistemológico", isto é, ele defendia que o método científico fosse essencialmente ignorado para a produção científica, ou ao menos não fosse usado como método único absoluto.

A ciência moderna basicamente se tornou, por causa disso, uma forma de "gate keeping" de informação, e discussões sobre o assunto quase sempre são improdutivas porque os próprios cientistas não conhecem bem o método científico e, ainda, aqueles que desenvolveram algum interesse por filosofia da ciência, frequentemente não foram mais longe do que Karl Popper, um filósofo da Sociedade de Mont Pelerin. O problema é que, apesar de Popper ter sido uma figura relevante no começo da discussão de filosofia da ciência no século XX, ele não é o fim dessa mesma discussão, e figuras como Kuhn e Feyerabend não são levadas em conta em discussões de figuras públicas. Basicamente todos os cientistas modernos têm uma visão popperiana da ciência, mas evidências que podem contestar isso surgiram com o tempo. Isso leva a algumas descontinuidades de raciocínio, como ser essencialmente impossível explicar os desenvolvimentos "científicos" anteriores ao método, que só surgiu com figuras como Francis Bacon e René Descartes. Por exemplo, a defesa de Galileu por negar que a Terra era o centro do universo vinda de alguém de visão Popperiana não faz tanto sentido, já que os próprios criadores do método científico criticavam os métodos de Galileu por não serem científicos. Galileu não sabia explicar alguns fenômenos mecânicos que eram corolários de sua teoria cósmica, e basicamente teve de ignorar dados que existiam (algo que cientificismo popperiano considera abominável), mas ainda assim ele estava certo.

Apesar de ter escrito isso, meu propósito não é discutir a questão científica dos mitos, até porque acredito que ciência e mitologia são formas diferentes de se desenvolver conhecimento, com a principal de os mitos serem uma visão mais poética da coisa. É difícil ler um texto como o Enuma Elish e negar que haja conteúdo útil ali dentro. Mas definitivamente não há nada científico. Isso vem do fato que os seres humanos não são racionais, e são também (talvez principalmente) suas emoções e sua irracionalidade.

A melhor crítica à visão cientificista/racionalista do mundo que eu conheço veio de ninguém menos que o autor Fiódor Dostoiévski, em uma de suas obras-primas Memórias do Subsolo. Ao mesmo tempo em que o narrador é uma figura incrivelmente ressentida e definitivamente não é um modelo (René Girard explica muito bem o conceito do "Subsolo", ou ao menos a ideia do estado de espírito que significa estar "no Subsolo"), ele é brilhante e traz as piores verdades, ainda que frequentemente apenas para usá-las como ofensa. Na primeira metade do livro, que é essencialmente um diário do Homem do Subsolo, temos uma longa argumentação sobre diferentes questões que surgiam na Rússia na época (e eventualmente apareceriam com toda força no resto da Europa), e em especial o niilismo. Ora, se a ciência dita absolutamente tudo e é capaz de fazer o que for melhor para todos, os homens simplesmente não precisam mais fazer nada que não viver de acordo com tabelas e calendários.

Mas o Homem do Subsolo não acredita nisso:

Estais convictos de que, então, o homem deixará por si mesmo de enganar-se deliberadamente e, por assim dizer, a seu pesar não há de querer separar sua vontade dos seus interesses normais. Mais ainda: então, dizeis, a própria ciência há de ensinar ao homem (embora isto seja, a meu ver, um luxo) que, na realidade, ele não tem vontade nem caprichos, e que nunca os teve, e que ele próprio não passa de tecla de piano ou de um pedal de órgão; e que, antes de mais nada, existem no mundo as leis da natureza, de modo que tudo o que ele faz não acontece por sua vontade, mas espontaneamente, de acordo com as leis da natureza. (...)

Pergunto-vos agora: o que se pode esperar do homem, como criatura provida de tão estranhas qualidades? Podeis cobri-lo de todos os bens terrestres, afogá-lo em felicidade, de tal modo que apenas umas bolhazinhas apareçam na superfície desta, como se fosse a superfície da água; dar-lhe tal fartura, do ponto de vista econômico, que ele não tenha mais nada a fazer a não ser dormir, comer pão de ló e cuidar da continuação da história universal — pois mesmo neste caso o homem, unicamente por ingratidão e pasquinada, há de cometer alguma ignomínia. Vai arriscar até o pão de ló e desejar, intencionalmente, o absurdo mais destrutivo, o mais antieconômico, apenas para acrescentar a toda esta sensatez positiva o seu elemento fantástico e destrutivo. Desejará conservar justamente os seus sonhos fantásticos, a sua mais vulgar estupidez, só para confirmar a si mesmo (como se isso fosse absolutamente indispensável) que os homens são sempre homens e não teclas de piano, que as próprias leis da natureza tocam e ameaçam tocar de tal modo que atinjam um ponto em que não se possa desejar nada fora do calendário. Mais ainda: mesmo que ele realmente mostrasse ser uma tecla de piano, mesmo que isto lhe fosse demonstrado, por meio das ciências naturais e da matemática, ainda assim ele não se tornaria razoável e cometeria intencionalmente alguma inconveniência, apenas por ingratidão e justamente para insistir na sua posição. E, no caso de não ter meios para tanto, inventaria a destruição e o caos, inventaria diferentes sofrimentos e, apesar de tudo, insistiria no que é seu! Lançaria a maldição pelo mundo e, visto que somente o homem pode amaldiçoar (é um privilégio seu, a principal das qualidades que o distinguem dos outros animais), provavelmente com a mera maldição alcançaria o que lhe cabe: continuaria convicto de ser um homem e não uma tecla de piano! Se me disserdes que tudo isso também se pode calcular numa tabela, o caos, a treva, a maldição — de modo que a simples possibilidade de um cálculo prévio vai tudo deter, prevalecendo a razão -, vou responder-vos que o homem se tornará louco intencionalmente, para não ter razão e insistir no que é seu! Creio nisto, respondo por isto, pois, segundo parece, toda a obra humana realmente consiste apenas em que o homem, a cada momento, demonstre a si mesmo que é um homem e não uma tecla!

Bom, eu me recuso a ser uma tecla de piano e me recuso a ter a vida ditada pela ciência. Os mitos me parecem muito mais interessantes.

Também gostaria de deixar público o agradecimento à professora Raquel Imanishi, que me ajudou bastante no trabalho e apoiou quando escolhi um tema ortodoxo. Tivemos nossas pequenas discordâncias, mas nada que atrapalhasse alguma coisa.