A Torre e o Chão

Certo dia quando eu tinha seis anos, descobri uma verdade, uma verdade dura que se manteria comigo por toda minha vida. Eu estava na fazenda sozinho e olhei, por acaso, para a porta de tela, onde vi nossa gata. Ela estava colada ao chão e perfeitamente parada, exceto por sua cauda, que batia como um metrônomo de um lado para o outro. Eu podia ver seus músculos se contraindo por baixo de seus pelos azul-acinzentados. Seus olhos ardiam por um rato que estava aproximadamente um pé a sua frente. Nenhum dos animais se movia, e eu também não, mas sentia meu coração bater. O duelo terminou quando o rato finalmente se moveu e a gata o pegou com um golpe, sem suas garras. O rato parou e, depois de um breve momento de pausa completa, se moveu de novo. A gata o bateu novamente e de novo o rato parou. Isso se repetiu várias vezes. Então o rato começou a lentamente ir para trás, e a gata se agachou profundamente, dando um grande salto em sequência. O rato estava preso entre as duas patas dela. Ele se debatia para fugir, mas seus esforços eram em vão, com a gata movendo seu rosto para a frente do rato, que, desesperado por liberdade, mordeu o nariz da gata. Ela se assustou momentaneamente, recuando sua cabeça. Mas seus olhos verdes se enegreceram como as asas de um corvo, seus dentes se fincaram no rato, e eu ouvi os pequenos ossos se quebrando enquanto o pescoço da gata balançava de um lado para o outro até o rato ficar parado e mole, mas ela não parava de balançá-lo. Ela jogou, então, o rato no feno e foi embora. esse último momento foi o que mais me surpreendeu e amedrontou. Nada do que aconteceu tinha a ver com comida ou fome. E foi aí que aprendi essa verdade tão trabalhosa de perceber: existe uma diferença entre o que uma coisa é e o que ela parece ser. Algo pode parecer contente e feliz enquanto se deita tão perto de você que dá para senti-la ronronando e miando na sua barriga. E se você não olhar para a porta de tela e para o mundo, você talvez nunca perceba que aquilo que você acha que conhece é, na realidade, algo muito mais perigoso.
Assim que aprendi essa verdade, comecei a ver exemplos disso em todo canto. Tínhamos um quadro pendurado na parede. Nele, uma mulher estava tirando uma camiseta de um varal. Ela tinha prendedores em seus dentes, estava ventando, e um garoto estava puxando-lhe o vestido. A mulher parecia estar com pressa, e a cena como um tod ome deu a ideia de que, além da moldura, poderíamos ver nuvens escuras e cheias. Mas não era isso.
Era apenas tinta.
Decidi, então, enxergar a pintura da maneira como ela realmente era. Encarei o negócio por muito tempo, concentrando para tentar ver apenas a tinta. Mas não adiantava. Tudo que meus olhos me permitiam ver era a mentira. Na verdade, quanto mais tempo eu passava olhando a tinta, mais detalhes falsos eu imaginava. O garoto chorava, como se sentisse medo, e a mulher estava mais fraca do que inicialmente imaginei. Finalmente, desisti. Percebi naquele momento que é necessário ter uma imaginação poderosa para enxergar alguma coisa como ela realmente é.

Based on a True Story, Norm Macdonald. Capítulo 4. Itálico adicionado por mim.

Você tem imaginação?

Nos últimos tempos, tenho pensado muito sobre o que formou meu imaginário. Não tenho muitas memórias de quando eu era criança, provavelmente foi uma infância sem grandes e marcantes eventos, por um motivo ou por outro, mas é inevitável ver que existem coisas de lá. Não ouço tantas músicas que conheci na minha infância, ainda que algumas carreguem aspecto nostálgico, nunca fui de assistir desenhos animados e até hoje prefiro ler quadrinhos a assistir animações.

Por exemplo, Dragon Ball Z foi algo que eu assistia muito, para os meus padrões, e mesmo assim acredito que nunca vi inteiro. Não passei pelo ritual de tantos colegas de geração de assistir episódios e episódios de filler, mas já li o mangá de cabo a rabo umas quatro vezes. E, mesmo assim, não é como se eu lesse muitos quadrinhos. Consigo pensar em poucos outros que li — Inuyasha, Saint Seiya, Pokémon Adventures e, claro, Rurouni Kenshin, mas não muito mais, e todos em preto-e-branco.

E o computador, que tanto admiro? Realmente ele abriu portas para muitas coisas incluindo alguns dos quadrinhos mencionados. Sempre gostei muito de jogar. Tendo liberdade para usar computadores apenas aos finais de semana, e ainda o dividindo com dois irmãos, ele por muito tempo foi um objeto de desejo puramente por representar jogos. JRPGs moldaram caráter de muitos da minha geração e da anterior — obrigado, Hironobu Sakaguchi — e não há dúvidas de que não sou diferente. O jogo que mais joguei na vida foi Pokémon Emerald, com seu mundo colorido e vivo, mas vi várias jornadas do herói em Final Fantasy IV e VI, Chrono Trigger, Fire Emblem e tantos outros.

Algo em comum entre essas atividades é que, para mim, elas eram extremamente solitárias. Os jogos dos anos 2000 eram notórios por terem experiências com outras pessoas, mas nunca foi o caso comigo. As vezes em que joguei com algum amigo ou colega de escola podem ser contadas na mão. Até quando se tratava de jogos adaptados para várias pessoas era uma experiência solo — eu podia relaxar colocando Bomba Patch no PlayStation 2 e contratando o Rivaldo para jogar no Glorioso. Talvez por falta de experiência com isso, até hoje não entendo pessoas que ficam jogando e jogando papo fora no Discord.

Só quando me tornei adulto tive uma experiência de multiplayer, e foram sentimentos mistos. Em alguns casos era fantástico — devo ter gastado coisa de 200 horas jogando Terraria com amigos por chamadas — mas sempre foi algo que tivesse algum estímulo estético para mim, tanto que algumas das coisas pelas quais passei nessas situações já me apareceram em sonhos. Parece que não consigo simplesmente me divertir com outras pessoas meramente por me divertir. Não gosto de me divertir, talvez?

Gosto de pensar que, mesmo sem sermos grandes criadores com mentes poderosas e imaginação fora da curva, ainda podemos fazer um mosaico daquilo que nos inspira e nos define. Não, não criamos do zero cada pecinha, mas ainda podemos arranjá-las como nos parece bonito e criar algo de novo. Essa era, em algum nível minha experiência com jogos, criando coisas neles até me sentir satisfeito, às vezes tentando ir mais longe do que consigo e me irritando, apenas para desistir no fim das contas. Ah, como é boa a sensação de desistir de algo! Mas de que adianta fazer essas coisas se não temos com quem compartilhar? Talvez assim passemos a escrever textos em sites pessoais sem pretensão de arranjar público.

Ver não [é] tudo. Pensar e falar [é] tão importante quanto. A vida termina quando você morre. Mas a imaginação que [você] compartilha com os outros vive para sempre.

— Quan, Final Fantasy IX.

O sonho mais marcante da minha vida aconteceu em 2020, e até hoje volta e meia penso em algo relacionado a ele. Não vem ao caso de contar publicamente a história porque não estou deitado em um divã de costas para a internet inteira, minha psicóloga pessoal, mas foi um sonho um tanto malvado comigo. Não por ser ruim, mas exatamente o contrário. Ele só me jogou em um ideal completamente descolado da minha realidade sem dizer muito bem em quais pedras pisar para atravessar o rio. É aí que a imaginação começa a ser maligna.

Lembro-me de ter lido Milhões de Pensamentos Perdidos, trabalho de sexologia do neurocientista Ogi Ogas se baseando em atividades internetescas, e ter achado extremamente engraçado como havia evidência sobre a sexualidade feminina ser fantasiosa. Mulheres acessam mais sites como Literotica, e lêem muito, muito mais contos e livros eróticos do que homens. A atividade masculina de assistir pornografia tem seu contraponto feminino em fantasiar cenários estimulantes. Mas assim como existem mulheres que assistem pornografia, existem homens que se gratificam com fantasias.

Dou esse exemplo porque nele é muito óbvio que a imaginação faz mal, mas e quando colocamos cenários perfeitos, sem problemas, idealizados e completamente descolados da nossa realidade, não estamos também fazendo mal para nós mesmos?

Isso acontece até politicamente. Quando acompanhamos candidatos subindo em palcos de eventos internacionais, não estamos tendo envolvimento com nada de concreto, no mundo real. Estamos só alimentando o vício em política, de maneira exatamente igual à pornografia. A relação que a maioria das pessoas tem com política é a mesma relação que mulheres costumam ter com contos eróticos, que é a mesma que homens tem com pornografia — você imagina ou enxerga algo que está muito distante da realidade, e fica viciado nessa imagem. Enquanto isso, na vida real não temos atores pornô, não temos príncipes encantados, os discursos políticos são muito menos importantes do que você imagina, e não temos a fantasia da nossa imaginação. É o triunfo da "política como desejo", como diria James Burnham, em detrimento da política baseada em fatos. Não só isso, o envolvimento excessivo com a fantasia e a imaginação desmotivam a efetivamente tentar alguma coisa na vida real. Na fantasia, não existe possibilidade de falharmos ou de as coisas darem errado, mas na vida real existe, e isso assusta. O problema é que a fantasia não é gratificante de verdade, porque a vida real que realmente importa.

Se não temos imaginário, como suspeito que muitos não tenham, em certo nível somos seres autômatos, quase desprovidos de alma. E caso tenhamos, claro, podemos (e devemos) cultivá-lo. O negócio é que o perigo de cair no vício pornográfico é enorme. A armadilha é essa, inclusive. Se não temos ideais somos pessoas cínicas com amargor borbulhando embaixo da máscara social do momento, e se perdemos contato com a realidade, somos completamente inúteis não só para nós mesmos como para aqueles ao nosso redor, virando peso para os outros carregarem.

É muito fácil cair em qualquer uma das armadilhas. "Imaginação" é para pessoas que não vivem na vida real, diria o cínico, em contraste com o idealista batendo orgulhosamente no peito ao dizer que nunca prostituiria seus valores ao mesmo tempo que ignora suas responsabilidades e se torna um peso para os outros carregarem. Em um livro sobre educação, Bryan Caplan se define como um "idealista cínico". Provavelmente eu me encaixaria nisso, também.

Não abro mão de forma alguma dos meus ideais e daquilo em que acredito, mas também tento ser um maximalista da realidade. "There are no solutions. There are only trade-offs," diria Thomas Sowell. Não vamos chegar no paraíso, já caímos de Éden e não tem volta. Mas isso não impede de que as coisas sejam milimetricamente empurradas para uma direção melhor — nada precisa ser pior do que é. Lutar contra a realidade é tornar as coisas mais difíceis, mais dolorosas e mais sofridas do que elas precisam ser, mas aceitá-la sem questionar, sem acreditar, sequer, na possibilidade de mudança, é cometer suicídio moral. Devemos imaginar Sísifo feliz, porque ontem sua pedra rolou para baixo, mas hoje ele tem a possibilidade de empurrá-la para cima novamente.

Feliz é a palavra chave.

Às vezes, a vida me ataca com uma alegria insuportável que me leva a risadas histéricas. Completamente fora de controle, me pergunto como a vida consegue tantas e tantas vezes me surpreender completamente. Como pode um homem ser cínico? É um pecado.

— Norm Macdonald, publicação no X, 17 de abril de 2018

E aí, acontecia, alguma coisa chamava para algum lugar, e sempre me parecia que se eu seguisse sempre em frente, andasse muito e muito tempo e fosse além de uma linha, por exemplo, daquela linha onde o céu e a terra se encontram, ali estaria todo o enigma e no mesmo instante veria uma nova vida, cem vezes mais intensa e mais ruidosa do que a nossa vida aqui; eu estava sempre sonhando com uma cidade grande, como Nápoles, tudo nela eram palácios, ruído, estrondos, vida... O que eu não sonhava! Mas depois me pareceu que até na prisão pode-se encontrar uma vida imensa.

O Idiota, Fiódor Dostoiévski, primeira parte, capítulo 5.

A imaginação pode ter suas armadilhas solitárias de te fazer cair em desencanto destrutivo, mas não podemos abrir mão dela. Existe uma diferença entre como as coisas são e como elas parecem ser. Nada é tão ruim quanto parece, e nada é tão bom quanto idealizamos em nossa Torre de marfim. E precisamos de uma poderosa imaginação para enxergar as coisas como elas realmente são. Não, não vou ser o protagonista do JRPG que descobre que na verdade é de um outro mundo e precisa derrotar Yaldabaoth, mas também não preciso ser o NPC da cidade que fica paralisada deixando a vida passar diante dos próprios olhos. Por isso ler as aventuras de Goku, de Kenshin, ou jogar as aventuras de Terra, Zidane (não aquele), Byleth e Ephraim, ou acompanhar as histórias do homem sem nome, de Randle MacMurphy ou ver a beleza de Hoenn, Gaia e Terraria — tudo valeu a pena. Tudo embelezou uma vida brasiliense fadada, a princípio, ao indiferente.

A ficção pode não ser nosso mundo concreto, mas ela pode nos inspirar a termos heroísmo e tentar fazer o mundo se aproximar um pouco mais daquilo que consideramos belo. Podemos agradecer por ela, mas de nada adianta consumirmos sem tomar as rédeas para fazer nada na vida. De nada adianta nossa imaginação se não fazemos nada de concreto com ela. Isso é a lição que aos poucos vou aprendendo e sei que, ainda que eu não aprenda completamente e siga em meu covarde casulo em uma ou outra coisa mais sensível para mim, é verdadeira.

Sim, é bem provável que você nunca viva a vida que você idealiza. Às vezes é até melhor que seja assim. Mas, querendo ou não, você tem o poder de escolher aproveitar o sublime e o belo, de maneiras que apenas você consegue. As suas amizades são únicas, suas jornadas são únicas, e ninguém mais no mundo vai sentir a mesma coisa que elas. Compartilhar isso com outros, construindo de fato algo na vida real, conexões e redes de apoio, amizades e relações duradouras, é o que devemos a nós mesmos para viver uma vida digna que vale a pena de ser vivida. A Torre de marfim só se sustenta caso esteja bem enraizada no chão.

If I'd thought about it, I never would've done it, I guess I would've let it slide
If I'd paid attention to what others were thinking, the heart inside of me would've died
I was just too stubborn to ever be governed by enforced insanity
Someone had to reach for the rising star, I guess it must be up to me
(...)
Well, I met somebody face to face and I had to remove my hat
She's everything I need in love, but I can't be swayed by that
It frightens me the awful truth of how sweet life can be
But she ain't gonna make a move, so I guess it must be up to me

— "Up to Me", The Bootleg Series Vol. 14: More Blood, More Tracks, Bob Dylan