Esse texto foi escrito para minha conta no Medium em 27 de agosto de 2020, que pretendo abandonar com o tempo.

O Sísifo Carioca

Existe algo verdadeiramente profundo sobre o fracasso do futebol carioca em todo aspecto possível.

O Maurício Meirelles já falou em um episódio do Flow Podcast que botafoguense é naturalmente bom em comédia como um mecanismo de defesa. Claro, estou polindo as palavras dele, mas a ideia é por aí de fato. "Se você parar para perceber, botafoguense se autoflagela, se zoa pra caralho". É verdade. Qualquer um que me conhece pode dizer que minha relação com o Botafogo, assim como a de qualquer verdadeiro torcedor botafoguense, é essa.

E o Botafogo não poderia ser de outra cidade. Rio de Janeiro, samba, bossa-nova, esse é o lugar para um time tão deprimente assim. Não é à toa que a bossa-nova é música de "velho rico e vazio por dentro", como disse um amigo. É precisamente isso, e justamente por isso um time com o espírito que o Botafogo tem só poderia se sediar no Rio de Janeiro. O verdadeiro sofrimento não é daquela pessoa que está batalhando para conseguir manter as contas em dia, e sim do ricasso que se mata porque não tem direção nenhuma na vida. No especial de comédia de 2019 Sticks and Stones, Dave Chappelle implicitamente faz exatamente esse argumento contando a história de Anthony Bourdain em paralelo com um ex-aluno brilhante de Direito que acabou perdendo todo seu futuro em um divórcio. E a bossa-nova é boa justamente por causa disso, ela é a tentativa de preencher esse vazio de Bourdain. Ela é a arte daquele que alcançou tudo material que poderia ter vontade, tem toda a estabilidade do mundo, e finalmente pode olhar para o espelho e sentir o quão vazio tudo isso é. O futebol tal qual como o futebol carioca só poderia acontecer numa sociedade que foi do auge da cultura brasileira um século antes. O Rio de Janeiro nos deu Pixinguinha e Noel Rosa, era uma das cidades mais luxuosas, cultas e artísticas do mundo. Antes disso, era nada menos que uma capital imperial, sob um líder extremamente culto e artístico, D. Pedro II. E conforme as décadas foram passando, a República surgindo, da mesma forma que estava no topo angelical dessa terra, o Rio descendeu ao Inferno.

Os quatro clubes cariocas mostram essa decadência, seja o Fluminense em sua afetação inexplicável, mas obviamente presente, ou o Vasco com seu sofrimento causado pela barganha com Satanás, na forma de Eurico Miranda. Essa característica dos vascaínos é a principal diferença que os separa de flamenguistas, espiritualmente falando. O flamenguista, em seu incorrigível satanismo imediatista, não tem a ressaca moral do vascaíno com Eurico (ainda que esteja em negação) e simplesmente se recusa a ver seus erros, sem importar com a forma como isso o afeta, sem ver a destruição que a busca cega aos seus objetivos causa, sem importar quantas crianças foram sacrificadas para o bem maior do Flamengo. A decadência e o sofrimento são as únicas constantes nos quatro grandes do Rio, sendo a diferença a forma como eles levam isso na prática. Em suma, o flamenguista bebe até ficar de ressaca e, na ressaca, bebe mais para passar o efeito; o vascaíno bebe até ficar de ressaca, e se recusa a tomar remédios para sentir a dor e o sofrimento; o fluminense só bebe até as 10 da noite; o botafoguense se recusa a beber e sequer chega a se divertir.

De uma forma ou de outra, ainda que frequentemente obscurecido, a cultura carioca está sempre manifestando a sua identidade absoluta: saudade. Seja a saudade do passado de glória, como o Botafogo, ou do passado livre de sobe-e-cai, como o Vasco, a saudade sempre está lá.

E não precisa ser de fato nascido no Rio para demonstrar isso. O carioca, mais especificamente o futebol carioca, chama todos aqueles que estão destinados a isso. Já que estamos falando de saudade, considere João Gilberto, o criador da bossa-nova e nascido na Bahia, que era um vascaíno apaixonado. A voz por trás da música mais emblemática do espírito carioca — "Chega de Saudade" — não era de fato carioca, mas sintetizou todo o espírito constante da cidade. A bossa-nova não poderia ter funcionado na Bahia como foi no Rio, o espírito não é o mesmo. O sofrimento trouxe ele ao Vasco e o Vasco trouxe ele ao sofrimento. Sim, é verdade que o Vasco tem suas glórias passadas, mas alguém duvida de que torcer para o Vasco é sofrimento? O Botafogo também tem glórias passadas, ainda mais antigas, que dificilmente são lembradas por aqueles que não torcem para o clube.

Kierkegaard falou em Post Scriptum Final não-Científico às Migalhas Filosóficas que

"(…) quando tudo está trabalhando em conjunto para facilitar as coisas e acabar com faltas, só sobra um perigo, o perigo de que a facilidade seria tão grande que eventualmente tudo seria fácil demais. Só sobra uma falta, embora ainda não sentida, a falta de dificuldade. É pelo meu amor à humanidade, e pelo meu desespero diante da minha vergonhosa situação, vendo que nada alcancei e fui incapaz de facilitar qualquer coisa já feita, e movido por um interesse genuíno naqueles que tornam as coisas sempre mais fáceis, que eu me dei a tarefa de tornar tudo mais difícil.¹"

É muito fácil torcer para um time que está sempre bem, sempre disputando até o fim os campeonatos de ponto corrido e as copas. Mas se você quiser tornar isso mais difícil e significativo, torça para algum time grande carioca, ou mais especificamente o Botafogo.

O botafoguense está sempre reclamando, e frequentemente com razão, afinal da mesma forma que não é justo uns nascerem cegos ou paralíticos em pobreza extrema enquanto outros nascem com saúde perfeita em berços de ouro, não é justo nascer no Brasil e torcer para o Botafogo enquanto outros nascem na alta sociedade alemã torcendo para o Bayern de Munique, mas esquece que o motivo de sua reclamação é precisamente o que lhe dá gás. Certo, digamos que abruptamente o Botafogo pare de sofrer o amargor do meio de tabela ano após ano, qual seria o motivo para se torcer? Qual seria o valor de uma campanha como a da Libertadores de 2017? Que momento marcante o Botafogo teria? A vitória seria realmente marcante? A nossa glória está na frustração. Ver o Botafogo dominar a primeira metade do jogo contra o Grêmio lá no sul para tomar um gol e sair desclassificado de uma campanha heróica, só para nós lembrarmos que no jogo anterior Gilson foi derrubado dentro da área por Edilson no começo do segundo tempo. Esse é o motivo para sermos gigantes. E só nós lembramos mesmo, porque só nós sofremos, e como dito antes nosso sofrimento dificilmente é lembrado por aqueles que não são botafoguenses. Nossa história e nossa grandeza estão no sofrimento.

É muito fácil você olhar para quem está com a “vida feita”, sem ter de se preocupar com recursos, mas não há nenhuma virtude em criticar isso. Thomas Sowell disse, em um artigo chamado Hard Times for Envy, que essencialmente todos estão numa situação pior do que alguma outra pessoa em ao menos uma dimensão de análise, e essa sensação é aproveitada para alimentar um constante sentimento de injustiça e vitimização. Mas para quê focar naquilo que os outros têm e você não? Para quê focar no que vai te causar inveja se, nas palavras de abertura desse mesmo artigo, ele fala que "quando estou na estrada com meu carro em controle automático e o som tocando "Stompin’ at the Savoy," estou no paraíso"? É perfeitamente racional pensar assim até porque é verdade. Todos nós temos esses momentos os quais, por mais que nossas condições pudessem ser melhores, são significativos de uma maneira verdadeira.

Mas eu faria o argumento ainda de que o nosso sofrimento é justamente o que buscamos enquanto botafoguenses. Em Memórias do Subsolo, Dostoiévski faz um argumento excelente que me soa profundamente botafoguense: uma dor de dente.

"prazer em uma dor de dente (…). Certa vez, tive uma dor de dente por um mês inteiro, então sei do que estou falando. As pessoas não sofrem aquilo caladas, é claro, elas gemem; e os gemidos não são diretos e honestos, eles são rancorosos, e o rancor é o propósito deles. (…) se ele não gostasse de grunhir, simplesmente pararia. (…) Os gemidos são uma expressão da inutilidade, que a mente consciente julga tão humilhante, da sua dor (…). Eles expressam a sua ciência de que ninguém está te causando a dor, mas ainda assim você a sente (…)"²

Ninguém escolhe de verdade ser botafoguense, afinal se tivessem poder de escolher sua torcida, dificilmente teriam a coragem de escolher o Botafogo. Em toda derrota, todo fracasso, toda desclassificação, toda decepção existe um pouco de Botafogo, e ninguém em sã consciência escolheria nada disso. Como Salomon Kalou falou em uma coletiva recente, "fui escolhido." Nós somos o Sísifo da contemporaneidade, e nossa vitória está em reconhecer isso por meio dos "gemidos" e "grunhidos" da reclamação. Talvez, no fim das contas, o verdadeiro campeão dos campeonatos cariocas seja o time que mais teve torcedores arrancando cabelos de raiva e sofrimento.

Aliás, em uma nota completamente separada, por que me parece que todos esses escritores mencionados caso nascessem no Brasil nos anos 90 — depois do título de 95, certamente — seriam botafoguenses ou, no mínimo, torcedores cariocas?

Falando nisso, finalizo adaptando Kierkegaard à minha realidade: é pelo meu amor à humanidade que sou Botafogo. E se for para puxar sardinha para o meu lado da torcida, diria que o torcedor objetivamente mais ascendido é o botafoguense, por meramente ter aprendido a adaptar a vida ao sofrimento, sem o ressentimento sequer dentro do futebol, aceitando a condição de carioca.


¹ Kierkegaard, Soren. Concluding Unscientific Postscript to Philosophical Fragments, parte II, seção II, capítulo 1.
² Dostoevsky, Fyodor. Notes from Underground, parte I, capítulo 4.