Como a Criatividade Prevê o Futuro, ou o Vidente Frank Zappa

Quando comecei a escrever isso, estava terminando de ler The Real Frank Zappa Book, faltava apenas uma página. Foi um dos livros mais interessantes que li a respeito de (ou, nesse caso, escrito por) uma figura da música. O livro não é exatamente uma autobiografia, apesar de passar por incidentes da história de Zappa, mas sim uma coleção de memórias e ideias.

Um pouco por causa disso, acaba sendo incrivelmente interessante. Ele conta uma história de seu passado, como isso influenciou sua visão de mundo e, de sua maneira racionalmente cínica, vai tecendo argumentos para justificar sua falta de credo em essencialmente qualquer coisa.

E eu falo isso de maneira bem séria: Zappa era notoriamente cético de praticamente toda forma de movimento ou entidade social. Dou um exemplo: em 1968, foi lançado um álbum chamado We're Only In It For The Money, cuja capa foi uma das primeiras paródias do álbum dos Beatles Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band. Os temas desse álbum são, em suma: paródias dos movimentos flower power e hippies ("Absolutely Free" e "Flower Punk" sendo excelentes exemplos, mas "Who Needs The Peace Corps?", "Concentration Moon" e todos os momentos em que ele fala de "creeps", sempre se referindo a hippies), crítica a política republicana ("Mom and Dad", "Bow Tie Daddy"), e pseudomoralistas ("What's The Ugliest Part of Your Body?", "Hot Poop"). Ele não discriminava os alvos de seus ataques.

O ponto é que no livro frequentemente ele fala de política, porque era um assunto que lhe despertava interesse (é um milagre uma pessoa que gosta de política e é sensata ou razoável). Eu costumo dizer que política é o assunto profundo de pessoas rasas, e ainda acredito nisso como uma excelente regra do polegar, mas Zappa é a rara exceção que realmente faz questionar a validade da afirmação. No décimo sétimo capítulo ele praticamente só fala de política, e já abre com:

Politicamente, eu me considero um (não ria) conservador pragmático. Eu gostaria de um governo menor e menos intrusivo, e menos impostos. O quê? Você também?

Acho que nunca vi algum artista que falasse abertamente de política da maneira como Zappa falava, e certamente não tendo visões tão autênticas. O contexto em que Zappa fez sua carreira era muito diferente do que temos hoje em dia. Nos anos 60, ainda existia uma onda "conservadora" (que Zappa mesmo descreve como algo que não era verdadeiramente conservador) e pseudomoralista, que seguiu forte pelas décadas seguintes — me pergunto onde foi parar tudo isso senão no mesmo lugar onde sempre esteve, mas com vestimenta diferente.

Apesar de estar situado em uma América absolutamente diferente do que temos hoje, suas críticas seguem valendo porque ele mostrou algo como uma visão profética. Por exemplo, tomemos a música "Brown Shoes Don't Make It", do álbum Absolutely Free de 1967. Para explicá-la, não precisa de muito mais do que ler a letra e ter um pouco de imaginação, mas deixemos o próprio autor falar: "'Brown Shoes Don't Make It' é uma música sobre pessoas sexualmente desajustadas que, por um meio ou outro, entraram no governo (...) e ou passam ou impõem leis que são injustas para o resto da sociedade, que por acaso não é sexualmente deajustado. É sobre um personagem chamado City Hall Fred que deseja secretamente em ter uma relação bizarra com sua filha de 13 anos banhada em caldas de chocolate." Poderia ser algo escrito sobre o caos político americano dos últimos anos, sobre aquele homem que não se matou, mas era sobre a crescente censura que existia nos EUA às peças artísticas que não eram saídas diretamente de comercial de margarina.

And he loves it, he loves it
It curls up his toes
She bites his fat neck
And it lights up his nose
But he cannot be fooled
Old City Hall Fred
She's nasty, she's nasty, she digs it in bed!
Do it again, and do it some more!
That does it, by golly! She's nasty for sure
Nasty, nasty, nasty...
Nasty, nasty, nasty!
Only thirteen, and she knows how to nasty
She's a dirty young mind, corrupted, corroded
Well, she's thirteen today and I hear she gets loaded
If she were my daughter, I'd...
(What would you do, daddy?)
Smother my daughter in chocolate syrup
And strap her on again, oh baby
She's my teenage baby and she turns me on
I'd like to make her do a nasty on the White House lawn
Gonna smother my girl in chocolate syrup
And boogie til the cows come home

Não é exatamente a coisa mais sutil do mundo, mas ele consegue tratar com certo humor absurdista (o detalhe da calda de chocolate sempre me pega) e por um ângulo extremamente raro, demonstrando o prazer do personagem City Hall Fred não meramente só no sexo proibido, mas também em degenerar e degradar a própria filha adolescente.

Mas eu trouxe esse exemplo não para falar de política, mas para falar da expressão de criatividade de Zappa. Esse foi um exemplo mais lírico, mas qualquer um que já ouviu ao álbum Lumpy Gravy, onde o compositor se aventura em música concreta, entende que não eram suas letras que eram mais ousadas do que o resto. O som da música de Zappa é tão incomum, até em parâmetros modernos, que frequentemente associavam-no ao movimento psicodélico e/ou de uso de drogas que existia nos Estados Unidos na época. Em resposta, não só ele parodiava essa noção (como na já mencionada "Flower Punk": I'm going to Frisco to join a psychedelic band/ I'm going to the love-in to sit and play my bongos in the dirt) como também abertamente falava contra elas. Não são poucas as entrevistas que se pode achar de Zappa falando contra as drogas. Mais um trecho de sua autobiografia:

A Questão das Drogas aparece tanto em entrevistas porque se recusam a acreditar que NÃO as uso. Parece haver entre americanos um consenso de que alguém não pode ser 'normal' se não usar drogas. Se eu falo que não uso drogas, olham estranho para mim e questionam. (...) Americanos usam drogas como se o consumo delas desse uma 'licença especial' para ser um filho da puta. Qualquer ato hediondo do qual eles podem ter participado durante a noite pode ser desculpado instantaneamente se eles disserem que estavam 'chapados' na hora. Pela magia de Química Corporal Alterada, a América dos anos 80 se tornou um incubatório de consumidores de drogas. (...) Quando o período de compras acaba, as vítimas [da proibição/regulação de drogas] se juntam em grupinhos deprimentes discutindo como vão se manter, já que o governo sempre quer taxá-los.

Então temos que a criatividade não vem das drogas, mesmo quando o mais bizarra o possível.

Rollo May, o psicólogo existencialista, em seu livro The Courage to Create trata com seriedade a questão da criatividade. Ele define no livro o processo criativo a partir da consciência:

A consciência que se obtém na criatividade não é o nível superficial de intelectualização objetificada, mas um encontro com o mundo em um nível que passa por cima da divisão de sujeito-objeto. 'Criatividade', para reformular nossa definição, é o encontro da pessoa intensivamente consciente com o seu mundo.

Essa definição nos dá margem para algumas interpretações. Em primeiro lugar, o processo criativo não surge de fora do "mundo" da pessoa, seja ele objetivo ou subjetivo (afinal ele sobrepõe ambos), mas das visões do artista sobre suas próprias experiências, uma espécie de meta-visão. Isso certamente explica algo no caso de Zappa.

Em sua infância, Zappa vivia com seus pais, que eram de descendência italiana e falavam italiano na casa quando queriam discutir assuntos delicados e provavelmente financeiros. Seu pai trabalhava como meteorologista numa fábrica bélica que fez gás mustarda e outros venenos. Zappa conta que, em sua infância, brincava com mercúrio ao ponto de seu quarto ser cheio de uma mistura de mercúrio e poeira nos cantos, e que também chegou a receber DDT de seu pai, que dizia que era algo até comestível — supostamente só matava insetos (hoje em dia ficam surpresos com vídeos dos anos 40 de crianças sendo banhadas de DDT mas aparentemente era normal, e a biografia de Zappa já dava a entender isso). Além de ter feito Zappa desenvolver interesse em química e explosivos, essa peculiaridade obrigava os membros da família a terem máscaras de gás em suas casas, que o compositor usava quando criança para fingir que era um astronauta com um capacete.

Dessa experiência, podemos explicar uma peça como "Prelude to the Afternoon of a Sexually Aroused Gas Mask", do álbum Weasels Ripped My Flesh de 1970. O título da música é uma paródia de uma peça de Claude Debussy, mostrando tanto a influência clássica dele quanto o que veio de sua infância. Mas, além disso, ela ainda tem a sua estética modernista saída diretamente de suas influências musicais: Varèse, Schaeffer (em menor grau), Webern.

Em outro trecho do livro, Zappa fala que acreditava que mais do que exposições culturais como a rock n' roll, a influência dos pais (e de religião) eram muito mais perigosas para o desenvolvimento saudável de crianças. Ele comenta sobre isso porque, como falei antes, ele estava numa época de crescente censura devido a supostos "maus costumes", e ainda no tópico de crianças, fala sobre os seus filhos e sobre o processo criativo deles. Por exemplo, sua filha mais nova, Diva.

Diva é uma amável garotinha. Ela acabou de completar nove anos. Ela gosta de fazer várias 'coisas normais de garotinha', mas (Améééééém!) ela tem seu lado bizarro também. Certa vez, ela tinha uma Barbie, mas Ahmet queimou a maior parte de seu cabelo, então Diva terminou o trabalho jorrando cola Duco [uma espécie de Super Bonder] em sua face, deformando o nariz e a testa. (Estou certo de que existe uma organização em algum lugar que protestaria isso.) Diva a chamou de "Mulher-Catarro" (nada mau, querida).
O dadaísmo segue vivo e feliz em minha casa desde... sempre. Ainda que meus filhos não façam ideia do que ele é, eles o são. Toda a casa, e tudo conectado com o que acontece por aqui, vive dele.

Hoje em dia Diva Zappa é uma cartomante que, por mais que seja bem menos incendiária que seu pai (ou, mais precisamente, seja bem mais básica que seu pai), ainda exerce seu espírito criativo ao deixar a mente solta para fazer as associações que sua profissão requer.

Criatividade é uma forma de trazer à tona, May indicou isso no mesmo livro que citei antes, e por causa disso é necessária em qualquer atividade de criação, ainda que seja científica, de engenharia ou artística. Ele diz:

O processo criativo deve ser explorado não como produto de uma doença, mas como representação do maior grau de saúde emocional, como a expressão de pessoas normais em seu ato de atualização própria. Criatividade deve ser vista no trabalho do cientista assim como no do artista, no do pensador assim como no esteticista, e não devemos subestimar o quanto ela está presente tanto em bastiões da tecnologia moderna quanto na relação normal de uma mãe com seu filho. Criatividade, como [o dicionário] Webster bem indica, é o processo de se fazer, de trazer ao ser.

A criatividade serve para o artista poder expressar e desenvolver sua visão de mundo. May dá, no mesmo livro, o exemplo de diferentes fases de Picasso, como a sua fase final mostrando figuras robóticas no lugar de pessoas, a individualidade morrendo, o que nos anos 30 e 40 poderia representar o espírito da época pré-guerra. É sabido que a filosofia fascista era contra a existência do nível individual e romântica na maneira de ver povos. Felippo Marinetti, poeta que deu à luz o futurismo, a base estética do fascismo italiano, escreveu dois manifestos que representam bem essa ideia. Por exemplo, o Manifesto Futurista de Marinetti possui alguns pontos como:

1. Nós queremos cantar o amor ao perigo, o hábito da energia e do destemor.
2. A coragem, a audácia, a rebelião serão elementos essenciais de nossa poesia.
3. A literatura até hoje exaltou apenas a imobilidade pensativa, o êxtase, o sono. Nós queremos exaltar o movimento agressivo, a insônia febril, o passo de corrida, o salto mortal, o murro e o soco.
...
6. É preciso que o poeta prodigalize com ardor, fausto e munificência para aumentar o entusiástico fervor dos elementos primordiais.

Desviando de um ciclista enquanto dirigia em 1908, Marinetti sofreu um acidente que alterou completamente sua visão de mundo. Com o óleo da máquina, ele acabou se emocionando e viu uma beleza inigualável. A partir daí, passou a dedicar seus trabalhos para o que eventualmente se tornou o futurismo. Outros pontos do Manifesto (como o quinto: "Queremos entoar hinos ao homem que dirige o volante, cuja haste ideal atravessa a Terra, lançada também numa corrida sobre o circuito de sua órbita") refletem essa visão de mundo e, também, o surgimento de ideias que o Fascismo popularizou, como a industrialização sendo símbolo da conquista do homem.

Seu outro manifesto famoso, o Manifesto Fascista (1919), aponta visões mais políticas/pragmáticas. Ainda assim, a divisão do texto partilha essa visão maquinista que Marinetti desenvolveu após seu acidente de carro. O texto é dividido em três partes, cada uma enumerando demandas políticas. Para o que Marinetti chama de "o problema político", as demandas são de sufrágio universal e elegibilidade para cargos eleitorais para mulheres, idade mínima para votos de 18 anos e para candidatos de 25, a abolição do Senado, entre outras; para "o problema social", as exigências variaram de salário mínimo e sistematização de trilhos e meios de transporte industriais, leis trabalhistas definindo carga horária de oito horas diárias e outras; para "o problema militar", as exigências foram a criação de milícias, a nacionalização (estatização) de empresas de armas e explosivos e políticas que pacificamente espalhassem a cultura italiana ao redor do mundo, algo como diplomacias; por fim, os "problemas financeiros" exigiam imposto progressivo, aumentando conforme a renda da pessoa, o confisco de possessões de congregações religiosas e abolição de bispados, e a revisão de contratos militares de tal forma que 85% dos lucros fossem confiscados.

Apesar de ser um texto completamente diferente do Manifesto Futurista, o Manifesto Fascista carrega nitidamente as ideias do primeiro. A luta idealizada no primeiro tomou a forma de uma espécie de "luta cultural" com objetivo de espalhar a cultura italiana pelo mundo, o combate dos museus, bibliotecas e academias se sobrepõe com a industrialização italiana, os ideais revolucionários que cantam "amor ao perigo", inspirando "destemor, coragem, audácia e rebelião" são paralelas às propostas de rebaixar as instituições religiosas.

É seguro assumir que o fascismo italiano também teve extremo apoio popular em sua concepção (independentemente de como Mussolini tenha morrido), dado que o Manifesto Fascista era extremamente popular, continha avanços de regulamentação trabalhista e um romantismo popular muito grande, coisas que até esquerdistas modernos defendem em seus discursos românticos sobre burguesia e revoluções (Eat the rich!). Sendo assim, é seguro dizer que Marinetti conseguiu canalizar uma espécie de sentimento geral que nunca foi formalizado por ninguém através de sua arte.

Rollo May também faz esse argumento no livro Courage to Create, falando de Picasso, e o historiador de religiões Mircea Eliade também fala algo por essas linhas. Em seu livro Mito e Realidade, Eliade argumenta que o artista utiliza a própria história, incluindo a de seu contexto, e faz uma regressão ao Caos primordial, jogando as sementes do futuro e funcionando como motor criativo da civilização. Por exemplo, a representação do Fim do Mundo em diferentes artes (música, plásticas ou cênicas) no começo do século XX pode ser vista como um prelúdio do que viria a acontecer ao longo do século. Não somente isso, os artistas ao regressar para o Caos primordial entram em contato com o motor que os fez chegar aonde se encontram em seu contexto e, por isso, acabam sendo também salvadores de tradições antigas.

Um exemplo disso é Arnold Schoenberg, compositor expressionista da segunda escola de Viena, que apesar de ser visto como uma espécie de revolucionário radical, acreditava estar meramente seguindo a continuidade da tradição musical europeia. Essa preocupação que motivou a aplicação de serialisno e atonalidade (ainda que ele não utilizasse ou aprovasse esse termo), dado que Schoenberg entendia que, para a cultura se manter, ela não poderia meramente repetir seus padrões eternamente até eles serem exaustos de significado. É um exemplo que encaixa perfeitamente com uma observação crítica de Eliade também em Mito e Realidade:

(...) a audácia e a provocação deixaram há muito de ser prejudiciais ao artista. Ao contrário, pede-se que ele se amolde à sua imagem mítica, que seja estranho, irredutível e que "produza algo de novo". É o triunfo absoluto da revolução permanente na arte. "Tudo é permitido" deixou de ser uma formulação adequada: qualquer inovação é consdierada genial de antemão, e equiparada às inovações de um Van Gogh ou de um Picasso, mesmo que se trate de um cartaz mutilado ou de uma lata de sardinhas assinada pelo artista.

A verdadeira revolução cultural está enraizada na história e, tal como Schoenberg, mantém contato com a continuidade da tradição do povo¹. Como também apontado em Eliade no mesmo livro (que aliás é de 1963), não existe mais choque com artistas fazendo obras supostamente chocantes. Acredito que seja porque é uma questão de intenção: não adianta ter intenção de ser chocante como um fim em si mesmo.

Em meio a descrições sobre experiências musicais e descrições de como é o processo de compor, fazer performance e até maestrar, e sobre como II-V-I é uma progressão harmônica odiosa e base da "música de brancos" ruim, Frank Zappa menciona o que considera a Regra Final da experiência musical: Se soa bom para VOCÊ, é do caralho; e se soa ruim para VOCÊ, é ruim. Mas ele não para por aí, afinal imediatamente diz: "Quanto mais variada sua experiência musical, mais fácil é definir por você o que você gosta e o que você não gosta".

A experiência musical de Frank Zappa era extremamente variada. Seus primeiros interesses musicais foram, em paralelo, R&B e avant-garde. Ao mesmo tempo que Zappa ouvia Guitar Slim, uma de suas maiores influências, ouvia Stravinsky e Webern. Para desenvolver seu senso de estética, ele se expôs a diferentes tipos de música e produziu diferentes tipos de música (em seu álbum ao vivo The Best Band You Never Heard In Your Life, inclusive ele começa uma versão do Bolero de Ravel em reggae, e menciona no capítulo 8 de sua autobiografia momentos em que tocou heavy metal ou ska, mais especificamente em How Did They Manage to Do That?) e, aplicando sua Regra Final, produziu suas obras sempre buscando algo perfeito — inclusive de maneira inconveniente usando sintetizadores para trabalhos orquestrais, o que enfureceu sindicatos de músicos.

Talvez por causa dessa experiência musical complexa, Zappa tinha muito contato com a realidade, e entende que por trás de cada show aparentemente glamuroso, existem corredores com fedor de urina, brigas internas e, na época, a necessidade de lidar com a indústria musical. Somando essa experiência absurda à inteligência do homem, Zappa conseguia fazer observações que continuam válidas até hoje.

Para exemplificar, trago uma história legal (no sentido menos legal da palavra), na qual Zappa estava tendo de ir à justiça britânica por causa de uma quebra de contrato com o local onde ele faria uma performance de sua quase ópera 200 Motels. Basicamente, as pessoas que alugariam o espaço para Zappa consideraram que o conteúdo era obsceno e, por isso, decidiram de última hora, sem aviso, não ceder mais o espaço, configurando uma quebra de contrato. Zappa os levou para a justiça britânica e lá teve de justificar o porquê de sua obra não ser obscena. Em sua autobiografia, ele coloca a transcrição de tudo que aconteceu na corte inglesa, e apesar de ser extremamente engraçada a maneira como homens-burocracia lidam com a obra e isso falar muito por si só, chamo a atenção para um momento específico onde falam sobre a música "Shove it Right In".

She painted up her face
She sat before her mirror
She painted up her face
She drew the mirror nearer

Practisissing, practiss, practicing!
The STARE! (x2)

(The 'secret stare she would use if a worthy-looking victim should appear)
The clock upon the wall
Has struck the midnight hour!
She finishes her call;
Her girlfriend's in the shower

Practisissing, practiss, practicing!
Half a dozen provocative squats!
Out of the shower, she sqeezes her spots;
Brushes her teeth;
Shoots a deodorant spray up her twat
(It's getting her, getting her hot — Oh-woh-woh-woh)
She's just twenty-four
And she can't get off,
A sad, but typical case
Last dude to do her
Got in and got soft;
She blew it,
And laughed in his face, yeah!

She chooses all the clothes
She'll wear tonight to dance in!
The places that she goes
Are filled with guys from groups,
Waiting for a chance to break her pants in

Provocative squats! (x4)

Well, at least there's sort of a choice there;
Twenty or thirty at times there have been —
Somewhat desirable boys there —
Dressed really spifiy, with long hair —
Waiting for girls they could shove it right in!

That's it! Shove it right in!
And pull it right out!
And shove it right in!

Ao ser perguntado sobre qual era o tema da música, Zappa respondeu que ela era sobre infelicidade.

Por mais que seja uma música de 1972, ela continua mais real do que nunca. Enquanto Frank Zappa ao contar histórias assim pensava em "groupies", algo como "maria-microfone", moças que tal como a de "Shove It Right In" vivem para conseguir um caso com algum músico famoso (somente para serem descartadas depois), hoje em dia temos mulheres acumulando seguidores em redes sociais como o Instagram na esperança de chamar atenção de algum homem famoso que possa bancá-la. Acredito que não precise dar exemplos desse tipo de figura, mas um caso óbvio disso é o que aconteceu com o Neymar e a acusação falsa de estupro feita contra ele. Ou, que não seja para chamar atenção de homens diretamente, mas para conseguir patrocínios que poupem-na de trabalho real (e, no fim das contas, também é para chamar atenção de homens afinal patrocínios são vendidos para o público em geral — e como nessa música, acho seguro dizer que geralmente é um público masculino).

Zappa não meramente descreveu um fenômeno de sua época, mas também previu o futuro. Dada oportunidade ampla para essencialmente qualquer mulher ter poder para se tornar uma "groupie" (porém menos corajosa, afinal agora está por trás do véu mágico da internet). É como Eliade disse, o artista capturando algum fenômeno que se manifestaria em seu absoluto depois.

Os casos de Arnold Schoenberg, Frank Zappa e Felippo Marinetti são três exemplos de artistas fazendo observações importantes e "prevendo o futuro" a partir de alguma forma de regresso. Schoenberg previu a desconstrução musical na tentativa de seguir a tradição musical europeia; Zappa previu os "americanismos" (que em si seriam um tema para outro texto) politicamente corretos que acontecem hoje a partir de observações de sua época, que era muito mais caricata em seu moralismo; e Marinetti previu (e, para ser justo, conduziu) o surgimento do sentimento fascista na Itália a partir da rejeição (e consequentemente uma interação, de certa forma um retorno, afinal não existe rejeição de algo sem antes reconhecimento desse algo) das artes clássicas em detrimento da indústria, do romantismo patriótico e da "era das máquinas", por falta de outro termo.

O problema surge no que pessoas não muito criativas chamam de "guerra cultural": cria-se uma divisão e nela não existe desenvolvimento estético nenhum de nenhum dos dois lados. Quem quer "conservar" meramente quer repetir as mesmas ideias e expressões até a exaustão, e provavelmente tem muito a aprender com um compositor como Schoenberg; e enquanto isso, aqueles que querem ser revolucionários fazendo algo como a peça "Macaquinhos" não conseguem entender que não existe revolução sem antes ter conhecimento profundo sobre aquilo que vem antes, e têm a aprender com Frank Zappa.

Se eu fosse escolher alguma ideia para ser absorvida ou ao menos levada mais a sério pelo leitor desse texto, provavelmente seria: mantenha-se aberto a experiências artísticas que você provavelmente não gosta, porque o futuro pode se manifestar ali de alguma forma.


¹ É interessante apontar que Eliade também comenta sobre como artistas, através de seus estudos em prol da arte, foram os responsáveis por resgatar tradições artísticas antigas. Ele dá o exemplo do Renascimento recuperando a cultura clássica em detrimento de filosofias racionalistas que já surgiam na própria Grécia e que, se dependesse delas, acabariam jogando as obras de Homero, Hesíodo, Ovídio e tantos outros no esquecimento. "Em última análise, a herança clássica foi 'salva' pelos poetas, pelos artistas e filósofos. Desde o fim da Antiguidade — quando não eram mais tomados ao pé da letra por nenhuma pessoa culta — os deuses e seus mitos foram transmitidos à Renascença e ao século XVII pelas obras, pelas criações literárias e artística." Em outro trecho, "(...) se a religião e a mitologia gregas, radicalmente secularizadas e desmitificadas, sobreviveram na cultura européia, foi justamente por terem sido expressas através de obras-primas literárias e artísticas."