Esse texto foi resposta a uma pergunta no Quora: "Qual o papel de comediantes na política?"

O Tolo é o Precursor do Rei

Comediantes genuínos são importantes não só na política. Acredito que eles são os observadores perfeitos de comportamentos de larga escala e de questões sociais. É uma ideia antiga, aliás, não é algo recente. Basta ver em obras como Rei Lear, de Shakespeare, onde o Bobo age como um conselheiro/vidente de Lear. A função do comediante é entreter, mas o comediante realmente grande, que marca, tem uma característica: falar aquilo que é uma verdade aceita por todo mundo mas poucos param para realmente pensar sobre.

Mas comediantes frequentemente fazem mais que isso. Hoje em dia, especialmente falando em política, creio que a importância principal de comediantes está na questão de liberdade de expressão. Não acho que nenhum lugar onde comediantes são essencialmente perseguidos por seu trabalho, fazer piadas, é exatamente seguro. Recentemente estava até conversando com um amigo que contou a história de um cara "engraçadinho" na União Soviética, cuja defesa foi contar piadas até as pessoas no julgamento começarem a rir (e também serem condenadas). Ver como um determinado regime trata os comediantes é um bom barômetro de autoritarismo — o que me deixa horrorizado ao ver o estado do Brasil (e não falo necessariamente do Brasil hoje em dia, onde o comediante ainda tem relativa liberdade, mas do Brasil onde Rafinha Bastos é processado por falar que "comeria ela e o bebê").

Eu estou para ler um livro precisamente sobre isso, de um cara chamado Leonard Freedman. Ele tem um artigo chamado Wit as a Political Weapon: Satirists and Censors, onde ele faz um resumido estudo de regimes autoritários do século XX e XXI e a relação deles com comediantes que eram banidos, presos, executados, etc.. Dá exemplo da Rússia atual, Myanmar, Líbia e, na Síria, por mais que em 2001 Bashar Al-Assad tivesse permitido que uma revista satírica fosse criada oficialmente, em 2003 o governo já estava pensando em voltar atrás na decisão e acabou que a revista foi fechada em 2005.

Ainda na Síria, um comediante chamado Ali Farzat chegou a ter suas mãos quebradas por homens do governo após ele postar desenhos humorísticos online, sendo alertado de que isso era "apenas um aviso".

Em países com menor nível de autoritarismo, ou maior grau de liberdade, comediantes têm muito mais poder. O melhor exemplo que conheço é Lenny Bruce, nos EUA.

Praticamente todos os palavrões em inglês foram "normalizados" por Bruce, que fez isso banalizando essas palavras. Ele tentou fazer isso com "nigger", inclusive, e foi bem sucedido até essa palavra voltar a se tornar tabu devido a movimentos identitários modernos. Uma de suas rotinas mais famosas é justamente "ofendendo" todas as pessoas da plateia com termos depreciativos para judeus (kike), mexicanos (spic e greaseball — que também pode ser usado pra pessoas do mediterrâneo), negros (nigger, boogie), irlandeses (mick) e leste europeus (polack). Ele podia ter adicionado mais, mas não imagino que tivesse asiáticos (cujo equivalente seria zipperhead) na platéia.

Ele não estava simplesmente ofendendo as pessoas, tanto que ele tem um ponto no final. As palavras só eram ofensivas porque as pessoas davam para elas um poder absurdo ao tratá-las como tabus. Ele até fala no fim que, se elas fossem banalizadas, não haveria nenhuma criança negra chorando ao chegar em casa porque os coleguinhas a chamaram de "nigger". Essencialmente, o ponto dele é que tornar essas palavras algo tão poderoso assim é ao mesmo tempo torná-las uma arma gigantesca, o que é errado.

What is he, that desperate for shock value?

Existe também a representação dessa rotina no filme Lenny, de 1974. Hoffman transmitiu perfeitamente a energia da apresentação de Bruce.

Outro famoso incidente similar de Bruce foi em 1964, possivelmente ainda melhor para fazer as pessoas entenderem o seu ponto. Ele foi convidado para um programa de talk-show, do Steve Allen. Lá ele foi introduzido como alguém que falaria "a palavra que começa com 's' e termina com 't'". Automaticamente, as pessoas acharam que ele falaria uma palavra que (ao menos em televisão aberta ao vivo) hoje é usada sem muitos problemas, mas ele foi um dos pioneiros para a sua popularização: "shit". Essencialmente, "merda" em inglês.

Ele também fez trocadilhos dizendo onde se usava a tal palavra, e de fato, em todas cabia o uso de "shit". Mas aí ele terminou dizendo que a tal palavra era, na verdade, "snot" (muco nasal).

O que ele fez com essa apresentação é mostrar para as pessoas que, na verdade, eles estavam projetando o tabu em cima da palavra não pelo que ela em si significava, mas pelo que eles estavam pensando que ela era. Não era nada mais que uma questão de "estética verbal", se é que existe isso. Uma palavra era considerada bonitinha e outra, com o mesmo significado e a mesma ideia por trás, era considerada tabu.

Com a morte de Bruce, nenhum comediante foi processado ou perseguido por uso da linguagem, por mais ofensiva que fosse.

E adicionando, eu fiquei muito feliz de ver as ideias de Lenny Bruce serem ressurgidas recentemente. Em 2017 teve um caso gringo de uma youtuber que chamou outro, idubbbzTV, de racista por usar a palavra "nigger", ainda que não tivesse contexto racial, e terminou com uma obra-prima de 20 minutos essencialmente defendendo liberdade de expressão:

Say 'nigger!'

Mas agora, mudando o foco do resto do mundo… falemos um pouco de Brasil.

Ao contrário dos EUA, aqui nunca teve apreço verdadeiro à liberdade de expressão. O caso do Rafinha Bastos, que mencionei no começo da resposta, aconteceu em 2011, se não me engano. Até hoje ele é divisivo, veja como a recepção à piada foi no Youtube:

Eu arriscaria dizer que mais pessoas desaprovam que o contrário.

No começo da resposta, também mencionei a relação entre regimes totalitários e os comediantes. Curiosamente, o Bolsonaro é chamado de autoritário, mas nunca vi algum outro presidente que desse tanta "moral" para comediantes. Lembro dele ter postado alguma foto em algum lugar, ou alguma story no Instagram, assistindo ao Politicamente Incorreto 2018 do Danilo Gentili, e também sei que ele foi o único presidente (ou ex-presidente) a aceitar participar do The Noite. Aliás, esse aspecto humorístico do presidente é a coisa que mais me agrada nele. Não ligo muito para as questões tradicionalmente políticas e discordo frequentemente de suas falas sérias, mas ver alguém como ele na posição que ele tem postar vídeos sobre motos no Twitter, com legenda "IRRÚÚÚ", ou mandar piadinhas de tiozão, ou colocar trilha sonora de Sonic ou Dragon Ball em vídeos oficiais.

Então, vendo o atual governo, dá para ter alguma esperança no futuro de liberdade de expressão e da comédia no Brasil. Mas não foi sempre assim, como o caso do Rafinha Bastos indica. Outro exemplo, também recente e que entra num segundo problema, mostra que tem mais coisa envolvida.

Esse tweet me deixou irritadíssimo. É uma piada de Twitter, curta e engraçadinha, mas acabou tendo consequências horrorosas. Cocielo foi cancelado por completo por causa de uma cruzada de internet para criticar o tweet supostamente racista.

A piada para mim é obviamente sobre o fato do Mbappé, jogador francês de futebol, ser absurdamente rápido. Aliás, não só para mim. É muito óbvio que é esse o sentido. Podia ter colocado "Bale" ali no lugar que daria no mesmo. Mas uma internetesca multidão sem cérebro insistiu que foi uma piada por causa de Mbappé ser negro. Acabou que Cocielo foi pintado de racista e isso explodiu de forma absurda.

Até aí, tudo bem. A canalhice e covardia começa agora. Primeiro, fingindo tomar posição moral mas no fundo apenas aproveitando do burburinho, empresas se posicionam sobre Júio Cocielo. Patrocinadores começaram a parar de apoiar o cara por causa de u burburinho retardado criado por uma multidão objetivamente errada. Mas não só isso: ninguém do mesmo meio que ele, o Youtube brasileiro, defendeu o cara. A única coisa que fizeram foi tentar salvar as próprias fuças.

Ok, eu entendo que ninguém quer perder virtualmente toda sua fonte de renda do nada, mas isso é só a consequência imediata. O jogo é muito maior que isso, é sobre liberdade de expressão. E mais, se te apoiarem nessa briga (o que é muito provável vide a obviedade de as piadas não serem racistas), o ganho em longo termo é muito maior. Veja o que o Whindersson Nunes falou sobre.

Até o Mano Brown, uma figura que consegue constantemente redefinir o conceito de "decadência", disse que "queria cruzar" com o Cocielo, ou algo do gênero, insinuando querer uma briga física (que, aliás, seria engraçado pra caramba, especialmente se o Cocielo ganhasse).

Isso é, em última instância, falta de caráter ou no mínimo falta de apreço por liberdade de expressão. Falar que é a primeira coisa é um pouco menos certeiro, ainda que eu acredite ser verdade, mas a segunda é óbvia, e posso provar que é algo específico do Brasil. Em países (ou, mais especificamente, línguas) onde liberdade de expressão é valorizada não acontece esse tipo de coisa.

Pegando o mesmo meio: Youtube. Dessa vez indo para o Youtube em língua inglesa. Em 2016 o maior youtuber do mundo, Pewdiepie (ou Felix Kjellberg), fez umas piadas meio polêmicas (eu já questionei em outras respostas a natureza dessas polêmicas, que acredito serem totalmente artificiais e que as piadas não tiveram nada demais) e acabou essencialmente da mesma forma. Foi criado um burburinho retardado, só que em proporções globais, e em instantes os maiores jornais do mundo estavam chegando a chamá-lo de nazista.

A comunidade do Youtube falante de inglês abraçou completamente o Youtuber, por entender o contexto das coisas e ver que ele não estava sendo racista ou muito menos nazista. Veja agora a recepção a um vídeo do Wall Street Journal sobre o assunto, essencialmente chamando o cara de nazista (e compare com a reação à piada boba do Rafinha Bastos sobre Wanessa Camargo — que até hoje não sei quem é):

Esse é só um exemplo. Em 2018 teve outro muito bom.

Ethan Klein, um comediante/youtuber, fez uma piada sobre higiene em banheiros e terminou dizendo que era para ser chamado de Ellen, por querer fazer cirurgia depois de encostar o pênis na parte de dentro de um vaso sanitário. Foi chamado de transfóbico e, obviamente, ironizou a situação.

Não chegou a tomar as mesmas proporções do caso de Felix Kjellberg, mas não passou tão longe. Ethan ainda fez um vídeo sobre, e em seu bom-humor, essencialmente tentou passar a ideia de que "só porque você se sentiu ofendido com uma piada, isso não quer dizer que ela é ofensiva". Isso é verdade, mas eu iria além, iria aos níveis de idubbbzTV e Lenny Bruce, e diria que humor ofensivo é importante. Você pode ter seu gosto pessoal quanto a humor, mas não pode dizer que outra pessoa é má ou boa baseando-se no tipo de humor favorito dela. Esse segundo caso teve a mesma reposta do primeiro, com a esmagadora maioria das pessoas vendo a obviedade de que ele não falou nada demais, foi uma piada bobinha de Twitter. Ninguém foi cancelado.

Teve o caso do James Gunn, que foi demitido de alguma coisa relacionada a Star Wars (honestamente não sei e não me importo com o que ele fazia precisamente) por tweets de anos e anos atrás. Era algo claramente humorístico, mas envolvia coisas como golden shower (aliás, o que é golden shower?), pedofilia e coisa do gênero e apesar do tom, repito, claramente humorístico, as pessoas começaram a trazer à tona para dizer que ele era uma pessoa horrível.

Esse caso, ao contrário dos outros dois, terminou com a demissão do cara, como falei. Pessoalmente, acho que tem a ver com o fato dele estar mais ligado a mídia tradicional, enquanto a internet, que cresceu de forma anárquica, é muito menos centralizada. Apesar da demissão de Gunn, ainda assim apareceram pessoas para defender o seu direito de fazer piadas (o vídeo está no link do próximo parágrafo).

Pessoas podem rir por qualquer coisa. Literalmente qualquer coisa. Você não tem direito de ser a polícia de piada e, se é o caso, você é um representante de um problema gigantesco.

Existe uma diferença óbvia entre a maneira como as pessoas desses países de língua inglesa (em especial os americanos) tratam a liberdade de expressão e a maneira como os brasileiros tratam. E isso eu acho perigoso. Possivelmente a coisa mais perigosa para o futuro do Brasil. Se querem censurar comediantes, imagine o que querem fazer com pessoas que falam opiniões impopulares sobre assuntos mais sérios.

E a "cultura do processo" do Brasil também não ajuda. Não é incomum pessoas se processarem por pequeneza, eu mesmo já cheguei a ser ameaçado de processo por ter zoado (realmente foi muito, mas não foi nada mal-intencionado) uma pessoa muito burra que insistia em dizer que Cristiano Ronaldo tinha chegado a 55 km/h e usava de desculpa o fato de ter passado em medicina em uma universidade que não nomearei (sim, duas coisas completamente sem relação, mas chegou nesse ponto).

Por fim, outra coisa importante de apontar é que não adianta você tentar travestir sua comédia com ideologia. Bons comediantes não saem de lugares ideológicos, e por mais que as piadinhas lacradoras e o incontável número de mulheres que ficam pagando de comediantes repetindo jargão feminista ou "hahaha não acha o clitóris" sejam engraçadíssimas (para um nicho muito específico) hoje, não sobrevivem o mesmo tanto que as piadas de George Carlin, Lenny Bruce, Jerry Seinfeld, Louis CK, etc..