Isso foi escrito originalmente como uma resposta no Quora a uma pergunta de título "Alguns alegam que jazz é um gênero musical muito bagunçado e sem harmonia, qual a sua opinião?"

Jazz Não É Bagunça

A ideia de que o jazz é bagunçado ou sem harmonia é objetivamente errada. Eu realmente não entendo quem fala alguma coisa assim. Não é nem como se free jazz fosse o subgênero mais conhecido, mais popular do jazz. Isso só faria algum tipo de sentido se referindo a ele, e ainda assim a discussão é mais complexa.

O Ted Gioia, meu crítico musical predileto, tem um livro inteiramente dedicado a esse tipo de visão: How To Listen to Jazz. É um livro bem simples, mas é preciso ler com o Youtube ou o Spotify ao lado para ouvir as peças mencionadas. Ele começa falando justamente sobre questões rítmicas e tem um capítulo inteiro dedicado às questões estruturais do gênero. É engraçado porque ele começa falando sobre como ele fazia para estudar jazz. Ele comprava umas vitrolas muito específicas de rotações diferentes das usuais, e quando lidava com uma música mais complexa, colocava os discos para ficarem rodando mais devagar que o costume. Uma música de 3 minutos passava a ter 12, e ele prestava atenção em cada instrumento individualmente até entender direito o que se passava. Dá trabalho, obviamente, mas é infalível.

Mas enfim. Ele começa o livro com esses dois tópicos e, apesar dessas questões não serem essenciais para se apreciar música, elas importam e deveriam ser as de mais destaque para quem tem mais interesse técnico (aliás, jazz é música em extremamente técnica, ainda que frequentemente haja improviso ou coisa do gênero). Um dos compositores mais fáceis para visualização da parte estrutural (mesmo quando mais complexa) do jazz é também um dos mais famosos e talentosos: Duke Ellington. Veja "Sepia Panorama", que foi dada de exemplo no livro que mencionei.

Ela tem a estrutura simétrica. Começa com a orquestra e o baixo acústico interagindo um com o outro (A), depois os metais e clarinetes fazendo algo na mesma ideia (B), depois novamente a orquestra e o — acho — sax barítono (C) e em seguida uma improvisação com piano (D). Depois disso temos improvisação com sax (D), orquesta e sax (C), metais e clarinetes (B) e orquestra e baixo (A). A estrutura é ABCDDCBA. No fim temos um pedaço curto com o baixo acústico para finalizar a música.

Não tem como ser mais coerente do que essa música, quase matemática em sua estrutura.

Também cuidadosamente compostas eram as músicas de John Coltrane até ele começar a experimentar com free jazz no final de sua carreira. Em seu álbum de 1960 Giant Steps, ele até desenvolveu uma variação harmônica que ganhou o seu próprio nome: Coltrane changes. O exemplo mais fácil de visualização disso, apesar de não ser meu favorito, é a música que deu nome ao álbum. E aproveite para apreciar o maior saxofonista que já pisou na Terra.

Muita gente acha que o jazz é só improviso ou feito em pequenas orquestras, mas existem vários compositores no sentido tradicional. A pianista Carla Bley, possivelmente minha compositora favorita, fez algumas das peças mais sublimes do jazz, algumas bem experimentais — Escalator Over the Hill, A Genuine Tong Funeral e The Jazz Composers' Orchestra sendo os melhores exemplos — e outras mais voltadas para a sua paixão, as big bands — Musique Mecanique e o relativamente recente Appearing Nightly os melhores exemplos. Ela também compôs para seus dois ex-maridos, Paul Bley e Michael Mantler, para o primeiro mesmo depois do divórcio, aliás. Minha peça favorita de Paul Bley, Open, to Love, teve metade de suas músicas compostas por sua ex-esposa, incluindo a que darei de exemplo agora. "Ida Lupino" é possivelmente o melhor exemplo dele, por ser o mais conhecido.

Não existe nada da "pomposidade" associada ao jazz. Inclusive, uma das coisas mais brilhantes de Paul Bley em Open, to Love é o aproveitamento dos silêncios, que acabam tão relevantes para a música quanto as próprias partes de piano.

Agora no diametral oposto, a música final de uma das obras experimentais que mencionei antes, A Genuine Tong Funeral, tem um espírito "maximalista" e caótico completamente oposto.

A partir da segunda metade, eu até entendo alguém achar que isso é bagunçado mas, novamente, isso foi composto. E se você não está entendendo direito o que está acontecendo, siga os passos do Ted Gioia: o Youtube tem possibilidade de diminuir a velocidade do vídeo em até 0.25 da original, e com extensões do navegador pode conseguir até menos. Claro, algumas músicas não estarão na plataforma de vídeo, mas a ideia vale: baixe música na internet e diminua a velocidade em algum aplicativo, ora. Hoje, se esse tipo de questão realmente te interessa, temos todas as ferramentas possíveis para facilitar a resposta.


Esqueci de mencionar o bebop. É outro subgênero que pode ser considerado "bagunçado", mas se você entender os instrumentos como extremamente individualizados, uma extensão das personalidades dos músicos, entende melhor. O bebop surgiu praticamente com músicos desafiando uns aos outros para ver quem fazia solos mais complexos, de mais dificuldade técnica e, como solos são algo essencial ao jazz desde Louis Armstrong (e provavelmente foi a contribuição mais genial dele ao gênero), isso vai ser bem frequente. Vemos no bebop frequentemente trechos como "refrão" (apesar deste poder ter variações) seguido de solo, para voltarmos para o "refrão", e termos um segundo solo de um segundo instrumento. Mas mesmo assim, mesmo o bebop, consegue ter um lado mais instrospectivo. Foi o que tornou Miles Davis uma lenda logo no começo de sua carreira: Birth of the Cool foi um álbum que diminuiu o ritmo insano do bebop e trouxe mais intensidade emocional e aproveitamento de espaços (parecido com o que Paul Bley faz no álbum que mencionei antes). Como o nome sugere, ele acabou sendo um marco que possibilitou o surgimento do cool jazz, onde Davis também mostraria domínio completo com uma das obras mais importantes de todo o jazz, Kind of Blue.


E além disso, temos o jazz vocal também, e veja como falar em "jazz" é muito genérico, pois podemos tratar de coisas tão diferentes. Esse é o mais fácil de vermos paralelos com música popular mais normal. Uma boa cantora para fazer esse paralelo é Amy Winehouse. Ainda que ela não fosse uma cantora-compositora de jazz, frequentemente flertava com o gênero (ainda que somente com a parte mais "easy-listening", é verdade, o que em si não é bom ou ruim). Ela certa vez descreveu Sarah Vaughan como sua artista favorita, por ser capaz de usar a voz como um instrumento próprio, do mesmo calibre de um saxofone ou um clarinete. E eu concordo 100% com isso. Ouça "Lullaby of Birdland", a mais famosa de Vaughan, para ter uma noção.

Aliás, o cover de Winehouse dessa música do álbum At the BBC é uma maravilha. Fica claro como ela se inspirava em Vaughan na maneira como ela contorce, estica e contrai as notas e a altura de sua voz. No finzinho da versão original, observe como Vaughan vai de notas extremamente agudas a extremamente graves (provavelmente mais graves que a minha própria voz, aliás) numa facilidade absurda: "Oh because we're in love/ Sha-ba-ba-ba-ee…" (estando em negrito as partes muito graves e em não-itálico as muito agudas).

Amy Winehouse se inspirou tanto em Vaughan que em seu primeiro álbum, Frank, ela escreveu "October Song". A ideia era fazer uma homenagem a um momento marcante de sua infância, a morte de seu canário de estimação, chamado Ava. A melodia é claramente a mesma de "Lullaby of Birdland", com pequenas variações, e a letra menciona diretamente sua ídola: "Ava was the morning, now she's gone/ She's reborn like Sarah Vaughan/ In the sanctuary, she has found/ Birds surround her sweet sound" (aliás, eu amo a forma como esse refrão foi escrito).

A versão de "Lullaby of Birdland" que mencionei é mais claramente jazz. Aliás, as apresentações ao vivo de Winehouse, quando não estavam no período decadente e horroroso do fim de sua carreira, eram muito interessantes pela experimentação de arranjos que ela fazia. Como falei antes, ela não foi uma cantora-compositora de jazz, mas as influências de gente como Chet Baker, Sarah Vaughan e até mesmo Thelonious Monk eram óbvias. Isso acontecendo ao vivo, enquanto tínhamos mais Ray Charles e Aretha Franklin nos álbuns de estúdio.

Um exemplo ainda mais radical seria Sheila Jordan, nada menos que uma lenda do jazz vocal, que nos anos 70 chegou a lançar um álbum inteiro só com sua própria voz e um contrabaixo acústico. O álbum Sheila, de 1978, é uma obra-prima.

Para finalizar, só uma espécie de... reflexão?

Não é incomum eu ver gente falando mal de jazz, mas isso simplesmente não é válido pra mim. Primeiro porque eu não sei o que aquela pessoa está dizendo ao falar em "jazz". Não sei ao que ela se refere. Por exemplo, eu não sei diferença dentre os subgêneros do metal, mas eu não fico falando que "metal é ruim por causa de X, Y ou Z", porque eu não sei que subgêneros do metal têm X, Y ou Z. Também não sei se um subgênero com X', Y' ou Z' viria a me agradar. Não falo mal do metal enquanto um gênero, só me restrinjo a falar que não gosto do pouco que conheço e certamente não entendo.

Segundo… a definição de jazz é meio complicada. Historicamente falando, eu acredito que tiveram dois desenvolvimentos paralelos, o que é muito bizarro quando você para um instante para refletir. Não é como se fossem teoremas matemáticos que diferentes matemáticos de diferentes lugares do mundo pudessem descobrir simultaneamente. Existem fatores culturais envolvidos no desenvolvimento de arte, mas por mais bizarro que seja, aconteceu algo assim com o jazz, que foi desenvolvido em duas frentes. Enquanto no fim do século XIX e começo do XX os negros de Nova Orleans estavam desenvolvendo o que seria o jazz a partir da mistura do ragtime e blues, ao mesmo tempo (ou possivelmente antes) na França estava compondo Claude Debussy. Ele pode também ser considerado o "pai do jazz", de certa forma.

E esse "crossover" do jazz com a música erudita não ficou só no começo. É gigantesca a lista de compositores eruditos influenciados pelo jazz e vice versa. Aliás, o jazz mais abstrato e difícil de engolir de todos, o free jazz, nasceu no fim da década de 50 das experimentações de músicos de jazz com ideias de compositores eruditos, em especial Webern e Schoenberg.

Eu tenho certeza que existe algum compositor ou cantor de jazz para quase todo tipo de pessoa. Ao mesmo tempo ele pode ser uma ferramenta muito interessante para ver reação das pessoas. Por exemplo, ao dar carona para pessoas específicas, fiz questão de colocar no carro o jazz mais experimental que eu conseguisse pensar no momento (em geral ou Ornette Coleman ou um álbum específico de Coltrane, Ascension). Sim, elas ficavam incomodadas, e meu sonho é ver alguns dos comentários que elas faziam (o melhor deles feito no próprio Quora, mas não citarei qual) sendo transformados em copypastas. Haha.