Isso foi escrito originalmente como uma resposta no Quora a uma pergunta de título "Algum desenho animado, quadrinho, anime ou mangá já te ensinou algo?"
Foi escrito em maio de 2019, e é um exemplo extremamente específico de como narrativas míticas se manifestam em ficção e ressonam com pessoas. No caso, comigo.
Lições da Ficção Oriental
Não sou um grande conhecedor de mangás, e a maioria que eu li posso até ter gostado, mas não foram coisas que eu achei essenciais. Exceto por Rurouni Kenshin.
É uma história exagerada em muitos aspectos, mas por ser inspirada por acontecimentos reais, ela ganha um peso muito grande. Vários temas são pincelados por cima, existe muito sobre política japonesa da época da revolução que modernizou o Japão, o bakumatsu. Políticos e samurais reais são retratados na história, e apesar de volta e meia serem romantizados excessivamente, costumam ser figuras tão respeitadas na história japonesa que não é algo que fica feio.
No final das contas, Rurouni Kenshin é sobre conflitos internos e como encontrar a paz na própria alma. Kenshin é o nome do protagonista, um "rurouni" (algo como andarilho/mendigo) com uma conhecida cicatriz em forma de X na bochecha esquerda (sim, estou falando de Samurai X) também inspirado em um samurai verdadeiro chamado Kawakami Gensai, e até reciclando uma de suas falas, de que "kenjutsu com uma shinai não é mais do que uma brincadeira" (kenjutsu sendo a prática de espadachins e shinai uma daquelas espadas de bambu), e sua história é de redenção.
Uma espada é uma arma. Kenjutsu é a arte de matar. Não importa quais palavras bonitas que você use para falar dela, essa é a sua verdadeira natureza.
Não se sabe muito sobre ele por pelo menos metade da série, somente que na revolução japonesa ele lutou ao lado dos revolucionários pelo fim da era medieval japonesa do shogunato e pela modernização. Além disso, por algum motivo, ele se recusa a matar a qualquer custo, ainda que fosse conhecido como "Battousai, the manslayer", ou "Hitokiri Battousai". O primeiro nome, "battousai", é uma referência à sua "marca": o battoujutsu. É uma técnica em que o samurai vai correndo, com a espada embainhada e, sendo destro e com o pé direito à frente, retira a espada de uma vez da bainha com o máximo de força e velocidade, para ter mais momento e matar o adversário em um golpe apenas.
Cheio de "red flags", Kenshin eventualmente se encontra em situações que são extremamente perigosas, e sempre envolvem algum tipo de batalha interna. No primeiro arco, ainda que apenas um acontecimento tenha sido político, ele se encontra dividido diversas vezes, andando uma linha tênue que separa seu presente como "rurouni" do seu passado como "Battousai".
Uma das maiores distinções que são feitas no começo da série é daqueles que viveram a revolução e daqueles que não viveram-na. Sabendo o horror que foi o Bakumatsu, os samurais mais velhos tendem a não levar muito a sério os jovens e ter respeito mútuo entre si. No arco inicial, que acontece em Tokyo, primeiro adversário grande de Kenshin foi um assassino do período do Bakumatsu que sequer tinha uma visão política da situação, apenas matava por matar. Membro do Shinsengumi que matava pessoas que não deveria, pelo simples prazer e não pela filosofia de seu grupo, acabou sendo expulso e continuou agindo pelas sombras. Em seguida, seu novo adversário foi um grupo de ninjas/espiões (praticamente dá no mesmo no contexto) de um grupo também histórico no Japão: Oniwaban/Oniwabanshu (eu não sei a diferença por não saber japonês). Por fim, o último adversário do primeiro arco foi um samurai louco (e sem experiência alguma) que planejava voltar com o governo passado. Apesar de ser o vilão menos "badalado" dentre esses iniciais, para mim ali fala muito sobre a história de Kenshin, o protagonista: justamente por conhecer o que é matar alguém melhor do que ninguém, ele sabe o valor da vida (e inclusive desdenha desse adversário por se sentir orgulhoso de ter feito um pequeno corte).
No fundo, Kenshin é um pacifista, mas ele não consegue se livrar de uma espada enquanto houver quem queira o mal. Ele não gosta do que espadas representam na prática, afinal são instrumentos para a morte que inclusive simbolizam um passado sanguinário do Japão. Mas ainda assim, seguindo sua natureza de samurai, que não o permite deixar a vida da espada de lado, e sua filosofia pessoal, as utiliza para proteger aquilo que ama: a paz, seus amigos e pessoas próximas.
O arco mais famoso é o segundo, que é absurdamente mais político e conta o trajeto de Kenshin de volta a Kyoto para conter uma revolução interna no Japão, sendo liderada por um samurai louco que chefes do governo moderno tentaram queimar vivo por ter informações demais. O homem sobreviveu e está criando um exército para tomar o governo. Nesse ponto, introduzem outro personagem real da história japonesa, Saitō Hajime, dessa vez como um personagem recorrente. Hajime Saito é um personagem extremamente popular na história japonesa, muito por ter feito parte do Shinsengumi, a polícia especial japonesa na época do regime. Como membro da polícia, ele obviamente era oposto aos revolucionários, então Saito e Kenshin eram adversários. Apesar de ser um defensor do shogunato, Saito era um homem de princípios, e sua filosofia é a mesma do Shinsengume: "aku soku zan", ou "eliminar o mal instantaneamente", que tem toda uma filosofia por trás mas em que não vale a pena eu me aprofundar.
Como eu falei antes, aqueles que viveram no Bakumatsu têm respeito mútuo, e não é diferente entre Kenshin e Saito. Apesar disso, eles serão pra sempre inimigos, ainda que Saito esteja trabalhando para o governo da época pós-revolução (aliás, observe que aqui os personagens são movidos por princípios e não por política). Também como falei antes, Kenshin volta para Kyoto, a terra onde aconteceram suas maiores matanças, tendo como objetivo encontrar alguma forma de conter a crise causada pela revolução interna sem que ele matasse ninguém.
Nesse arco, temos muitas coisas marcantes: aparecimento de um gigante (eu falei que a história era exagerada em diversos aspectos), a resolução do conflito interno de Kenshin, aparição de inúmeros personagens memoráveis que eu não poderia ficar listando, o desenvolvimento psicológico de vilões, fazendo você entender não somente o lado de Kenshin, mas também de seus adversários, personagens antigos que voltam (o mestre do Oniwaban, depois de ter todos seus subordinados — uma espécie de família para ele — assassinados, mergulhando-o em um niilismo e desejo único de vingança contra o homem que o havia derrotado), um pouco do passado do protagonista sendo explicado. Por causa de tudo isso, entendo sua popularidade, mas não é por esses motivos que eu mais gosto de Rurouni Kenshin.
O terceiro arco é o mais pessoal, mais relacionado com o passado de Kenshin, que explica tudo sobre ele: desde sua misteriosa cicatriz em X na bochecha até os motivos mais detalhados e pessoais dele ter se recusado a matar mais pessoas e viver como andarilho. Aqui vamos fundo no psicológico do personagem, e finalmente tudo faz sentido. O adversário final não é nem um pouco relacionado a política, e sim ligado intimamente a Kenshin. Provavelmente a parte mais deprimente da série está aqui, onde vemos Kenshin mergulhado em desespero e falta de vontade/motivos para viver, quando raptam (e forjam ter matado) a pessoa mais importante de sua vida de andarilho.
Sem sombra de dúvidas meu favorito, o terceiro arco (ainda que tenha a arte menos entusiasmante de todo o gibi) trata novamente de temas de redenção e batalhas internas, e provavelmente na maneira mais profunda. Se víamos no primeiro arco e na primeira metade do segundo arco Kenshin sendo dividido, aqui temos o vilão determinado em matar Kenshin por causa de traumas, e Kenshin simpatiza com isso (apenas discorda dos meios).
Está sendo lançado mais um arco, depois de um hiato de mais de 10 anos, mas ainda não li suficientemente para falar melhor sobre.
Em suma, Rurouni Kenshin é minha obra do gênero favorita por isso. Eu consigo entender cada um dos personagens, ainda que por trás de loucura em diversos casos, e simpatizo com a ideia de conflito interno (que, repito, é absurdamente importante nessa história). Cada um tem seus demônios, e cabe a cada um encontrar sua própria paz interna (ironicamente, o autor está passando por um problema similar recentemente, já que foram encontradas fotografias no mínimo questionáveis em seus pertences).
Das coisas mais relevantes da história, uma que carrego comigo é a de sempre tentar ser fiel aos meus princípios, e respeitar quem é assim. Não gosto de "gambiarras morais" e pessoas sem pulso firme. Os personagens importantes todos se respeitam, como falei, mas alguns até são antagônicos em credos. Da mesma forma, eu posso ser amigo de pessoas de quem tenho radicais diferenças em visão de mundo, só preciso ter um nível de profundo respeito que a pessoa deve merecer.
Da direita para a esquerda: "Por que você está sendo tão gentil com eles? Não eram seus inimigos?", "Certamente éramos inimigos, mas não tenho nenhum ódio pessoal contra eles. Estávamos em lados diferentes, mas isso não muda o fato de que usávamos nossas espadas e nossas vidas para aquilo no que acreditávamos. Aliás, eu até me sinto mais próximo deles do que de alguns dos revolucionários que hoje estão no governo."
Algumas lições também à la Jordan Peterson frequentemente são dadas, e absorvi elas muito antes de conhecer o psicólogo canadense.
O movimento é de fato uma grande causa, mas antes de começar a reformar o governo vocês deveriam primeiro reformar si mesmos.
Além de tudo, ela tem um humor leve e natural para não ficar algo maçante de se ler e quebrar o ritmo sério. Não gosto de como, por exemplo Berserk força tanto a seriedade. Quando li tudo pela primeira vez, fiquei obcecado, e não pela seriedade da história, ou aspectos históricos (que nem são a parte mais importante na minha opinião, além de frequentemente ter trechos fictícios).