Isso foi escrito originalmente como uma resposta no Quora a uma pergunta de título "Qual a última música que te causou uma epifania, ou te deixou pensando profundamente?"

Epifania Novaiorquina

Eu precisava escrever sobre isso em algum lugar, mas não sabia exatamente onde, então fiz essa pergunta porque acho que tenho algo construtivo a falar sobre, e gostaria de saber se outras pessoas têm esse tipo de experiência também.

Não é incomum eu ter momentos epifânicos acompanhados de música. Lembro de quando "Idiot Wind" se encaixou perfeitamente pra mim e passou a fazer sentido — the priest wore black on the seventh day and sat stone-faced while the building burned —, mas eu fiz essa pergunta porque isso aconteceu recentemente e me fez lembrar de como é bom quando acontece.

Eu sempre gostei da estética urbana. Cidades grandes, com suas "sujeiras" e tudo mais. Tive uma conversa/discussão com um amigo recentemente sobre isso, onde eu defendia esse aspecto mais "sujo" da estética urbana enquanto ele, com olhos de um admirador de arte formal, apontava como aberrações as mesmas coisas que eu aclamava. Eu entendo que não são ambientes bons, entendo que não são ambientes saudáveis, mas a estética é muito relevante pra mim. Explico melhor.

Eu já respondi algumas vezes aqui no Quora algo sobre Seinfeld, minha série predileta. A estética da série é exatamente essa, uma comédia observacional sobre o cotidiano de pessoas comuns, problemáticas, mesquinhas, neuróticas. Humanas, afinal. Não são ruins, mas não são boas também. Não existe nenhuma tentativa de fazer as coisas parecerem mais "bonitinhas" do que são, inclusive eu suspeito que essa "ruindade" (que não é bem de ser uma pessoa ruim, mas de ser cheio de picuinhas, ser mesquinho, etc.), que foi baseada em grande parte em situações reais e em pessoas reais, é parte do motivo para a série ter sido tão absurdamente popular. Quase todo mundo consegue se enxergar em algum dos personagens, e os enredos maravilhosos, daqueles que todos conhecem no subconsciente mas nunca pararam para pensar, elaborar ou expressar, não atrapalham. Tem um episódio que, apesar de não ser dos meus favoritos, fala bem da estética suburbana em especial: "The Subway".

Outro bom exemplo da estética urbana/suburbana que gosto são os cartuns antigos dos Fleischer Studios, responsáveis por clássicos de Betty Boop. Tem um de 1931 chamado "Bimbo's Initiation" que tem novamente essa estética expressa de maneira incrível.

Ao contrário da estética hollywoodiana (mais especificamente da Disney, maior concorrente dos Fleischer Studios), com florestas, bosques, heróis corajosos e animais bonitinhos… aqui temos cultos, cidades sujas, esgoto e um personagem bem malandro. Isso se repete em outros cartuns além desse, mas estou só dando um exemplo para chegar onde quero.

Seinfeld e os Fleischer Studios tem uma coisa importante em comum. Ambos são exemplos de cultura novaiorquina. O primeiro é um retrato da vida de judeus de classe média na cidade, e o segundo é o começo da produção artística animada não só da cidade como do mundo todo — Max Fleischer foi o inventor do rotoscópio, tecnologia que permitiu que animações pudessem ser feitas. Quando você pensa em Nova Iorque, o que vem em mente? Frank Sinatra cantando "New York, New York"? Billy Joel talvez?

Não para mim. As músicas desses dois, apesar de inspiradoras, me parecem ter uma aura mais hollywoodiana. A cidade tem uma aura mais parecida com o começo da carreira de Bob Dylan (que se deu em Nova Iorque também, Greenwich Village para ser específico) — muitos crimes, muita coisa obscura, muita melancolia.

Sim, certamente a cidade tem muita coisa boa, mas isso aqui (que, aliás, tirei do twitter oficial da Debbie Harry, do Blondie — banda novaiorquina que está dentre minhas favoritas) é uma representação mais fiel dela.

Talvez Sinatra teria acertado mais em representar essa cidade com o álbum In the Wee Small Hours

Enfim. Meu ponto é que isso obviamente é feio, assim como os cenários do episódio de Seinfeld (e eu iria além e diria que de toda a série, mas precisaria elaborar mais), assim como os cartuns dos Fleischer Studios, assim como uma boa parte das músicas que Bob Dylan cantava no começo de sua carreira.

E "N. Y. State of Mind", música de Nas que praticamente abre um álbum divisor de águas no hip-hop, é um excelente exemplo do que a cidade realmente é. E essa é a música sobre a qual eu gostaria de falar.

Conheci Nas provavelmente em 2011, quando saiu o álbum póstumo de Amy Winehouse, Lioness: Hidden Treasures. Naquela ocasião, meu contato com hip-hop era nulo, e a música "Like Smoke" nem me despertou tanto interesse assim. Eventualmente, foi crescendo em mim e eu fui pesquisar mais sobre o homem que recitava aqueles estrofes intermináveis de maneira rítmica. E caí no álbum Illmatic.

Eu nunca parei para ouvir Illmatic direito até provavelmente 2016, quando foram constatadas minhas primeiras vezes ouvindo esse álbum no Last.fm. Esse álbum é sujo do começo ao fim, e não de uma maneira forçada, mas da maneira que temos em Seinfeld ou nos cartuns dos Fleischer Studios — é uma sujeira honesta.

E eu nunca vi coisa mais negativa, tambem. "N. Y. State of Mind" foi composta quando Nas tinha 17 anos, se não me engano, e já tem descrições não só maduras como horripilantes das ruas da cidade. Ele já abre seu verso falando:

Rappers, I monkey flip 'em with the funky rhythm I be kickin'
Musician, inflictin composition of pain
I'm like Scarface sniffin' cocaine
Holdin' an M16, see, with the pen I'm extreme

O último verso é real, ele realmente é extremo.

As descrições de Nas para o tema da música, o estado mental de quem vive essa parte de Nova Iorque, são incríveis. Ele pinta cenas vívidas de violência, desespero e ciclos de tragédias. No refrão dessa música, o verso mais famoso: "I never sleep, 'cause sleep is the cousin of death". Não sei se já ouviram a expressão "dormir como um soldado" (que, aliás, conheci por uma música de Joanna Newsom, "Soft as Chalk"), mas é algo análogo a essa expressão — dormir sem descanso.

A música é um vômito ininterrupto de descrições quase naturalistas da cidade de Nova Iorque, e sempre me pareceu absurdamente poderosa. Mas nessas últimas semanas algo aconteceu. Por volta dos 3 minutos e 20 segundos da música, logo antes de voltar para o seu contexto, Nas fala algo transcedental:

I got so many rhymes I don't think I'm too sane
Life is parallel to Hell, but I must maintain

Não muito tempo antes, eu tinha acabado de ler ao conselho de Pewdiepie (na verdade, Jordan Peterson, mas descobri não muito tempo depois que o youtuber, que respeito imensamente, tinha sugerido o mesmo livro em um de seus "book reviews") o livro de Viktor Frankl Man's Search for Meaning. Uma obra curta, bem curta, que é dividida em duas partes.

Frankl foi um psiquiatra judeu austríaco que foi um escravo em campos de concentração nazistas. Ele descreve a vida de escravos nos campos, e se foca não no ordinário — simplesmente desistir da vida em situações tão extremas e trágicas —, mas no aparentemente impossível: continuar mantendo a vontade de viver mesmo estando no mais absoluto estado de sofrimento humano.

Frankl descreve inúmeras situações de sua própria experiência ou de outros ao seu redor na primeira metade do livro, e na segunda faz uma análise mais técnica da situação, tentando na medida do possível se manter imparcial, como alguém não que viveu os horrores do Holocausto, mas alguém que estava observando de fora. Ele com frequência repete uma frase de Nietzsche: "he who has a Why can bear any How" (algo como "aquele que tem um Porquê suporta qualquer Como"). Cada um dos escravos que persistiu tinha em comum o fato de ter alguma justificativa para sua existência. Aliás, curiosamente, esse livro me fez ver que uma universidade brasileira média não é tão diferente assim de um campo de concentração, exceto pela ausência da constante ameaça direta de morte.

Estou trazendo tudo isso sobre o livro de Frankl porque Nas chega na exata mesma conclusão em "N. Y. State of Mind".

Em 81 versos da música, ele descreve situações caóticas, deprimentes, violentas, sujas, criminosas e perigosas. Mas em dois versos ele fala que talvez não seja tão são, e ainda assim, por mais que esteja no Inferno, ele ainda deve seguir. É literalmente a mesma conclusão de Frankl. Os não-intencionais objetos de estudo do psiquiatra nos campos de concentração eram justamente os que não desistiam de viver ainda que estivessem no Inferno na própria Terra.

Quando percebi isso, fiquei atônito. O Inferno é real.