Isso foi escrito um dia após sair o álbum de Bob Dylan Rough and Rowdy Ways, ou seja, dia 20 de junho de 2020.

Dias Duros e Turbulentos

A quarentena de tempo indeterminado começou, se não me engano, no início de março. Em uma cidade de funcionários públicos, provavelmente é claro como a água que as consequências existenciais não foram levadas em conta. Uma das experiências mais bizarras da quarentena foi ouvir no dia 27 de março a música "Murder Most Foul" de Bob Dylan.

A canção mais longa de toda a carreira do músico estava revivendo o contexto histórico americano que culminou na morte do presidente Kennedy, um dos eventos mais cruciais da história americana do século XX. Mas ela não é uma homenagem ou uma música nostálgica, e sim como eu falei, uma tentativa de reviver o contexto histórico. Ela tem uma aura religiosa, de um Mito de Renovação que estava tentando trazer de volta o espírito de uma era que estava para acabar, sendo anunciado o Fim do Mundo, em termos religiosos¹. Apesar de começar com o Fim do Mundo, ela vai regredindo, começando pelos Beatles, indo para Thelonious Monk, Nat King Cole, depois referenciando Shakespeare próximo ao final e tantas outras figuras no meio.

Apesar de uma interessantíssima canção, certamente não era o esperado para um músico que não lançava nada original em 8 anos. Mais estranho do que isso foi a música ter sido a primeira a ir ao topo de alguma categoria da Billboard. Digo, o cara não fez isso nem no auge de sua popularidade, mas conseguiu convencer dez mil pessoas a comprarem um single de 17 minutos sem grandes apelos comerciais? Quem diria!

Isso já seria um presente para os fãs do homem, ansiosos e famintos por mais conteúdo original — eu aprecio o que ele fez com Shadows in the Night, Fallen Angels e Triplicate, de verdade, mas material novo era algo inesperado fora de bootlegs — , mas menos de um mês sairia outro single. “I Contain Multitudes” era uma música bem menos distinta sonoramente, mas tinha uma edge que o single anterior simplesmente não proporcionou. Todos gostamos de um Dylan edgy, e versos como I’ll sell you down the river, I’ll put a price on your head/ What more can I tell you? I sleep in life and death in the same bed alimentam esse gosto, apesar do espírito melancólico da canção.

Novamente menos de um mês depois, no dia 8 de maio um terceiro single. “False Prophet”, minha favorita das três canções, provando que Dylan, como ele mesmo diz na letra, é "An enemy of strife/ I’m the enemy of an unlived meaningless life". Aos 79 anos o homem ainda estava fazendo coisa, ficar parado não é uma opção.

Mas mais importante que isso, no mesmo dia do lançamento de "False Prophet", um anúncio. Dia 19 de junho de 2020 teríamos um novo álbum chamado Rough and Rowdy Ways. Eu sinceramente não achei que isso aconteceria mais. Para mim, Tempest era o fim dos álbuns de canções originais. Ainda em 2012, um jornalista da Rolling Stone chegou a perguntar para ele se o título do álbum era uma referência à última obra de Shakespeare, uma de suas maiores influências literárias. Dylan na época não deu muita atenção para isso, mas até o dia 8 de maio de 2020, não tínhamos nenhuma evidência de que Tempest não seria de fato o último álbum de músicas originais do cantor-compositor. Eu mesmo acreditava nisso, mas felizmente não era o caso. Terminar uma carreira com um álbum tão cheio de sentimentos ruins quanto Tempest talvez não seria a melhor forma de fazê-lo. Tempest não tinha nada de nostálgico, nada de redentor, nada. Era um álbum sobre traição, amargor, violência e o vazio. Provavelmente isso contribuiu muito para a qualidade dele, provavelmente o seu melhor no mínimo desde Time out of Mind de 1997.

Tentei evitar ao máximo qualquer experiência com o álbum até seu dia de lançamento. Se eu procurasse, encontraria ontem ou anteontem, mas não parecia certo. Não porque eu ache que deva se combater a pirataria — ferramenta que me permitiu desenvolver um gosto estético e musical — , mas simplesmente parecia errado. Coincidiu com outros acontecimentos na minha vida, e o dia 19 de junho está marcado de uma forma ou de outra.

E aqui estamos. Ouvindo Rough and Rowdy Ways pela segunda vez. A primeira foi aproximadamente às 00:10. A segunda está sendo às 15:40.

"I Contain Multitudes" foi a abertura do álbum. É difícil eu não comparar a Tempest, já que este foi o último álbum "de verdade" de Dylan, e aqui eu vejo algo quase oposto ao de "Duquesne Whistle" acontecendo. A abertura de Tempest era uma música agitada, dançante, mas que mostra um lado mais escuro ao se assistir ao clipe.

Mas “I Contain Multitudes” é diferente ao mostrar o Dylan com certo humor em meio à letra melancólica. Não só a passagem mais edgy que mencionei antes, mas versos como “I’ll keep the path open, the path of my mind/ I’ll see to it that there’s no love left behind”, que seria excessivamente sério e no espírito do clipe de “Duquesne Whistle”, mas ao mesmo tempo é precedido de outros quase humorísticos: “Get lost, madam, get up off my knee/ Keep your mouth away from me”. A menção aos Rolling Stones ao lado de Anne Frank e Indiana Jones também mostra que não temos só um ponto de vista como foco para a música inteira. Como Dylan mesmo disse em entrevista recente para o NY Times, “a música é como uma pintura, você não pode vê-la toda de uma vez se está encarando de perto demais. Os pedaços individuais são só a parte de um todo.”

Estendendo essa mentalidade para o álbum inteiro, dá para colocarmos a música seguinte, já conhecida “False Prophet” em algum contexto. Dylan está andando nos lugares “onde apenas os sós podem ir”, mas com um tom essencialmente triunfante, melhor exemplificado no sexto estrofe: “I searched the world over/ For the Holy Grail/ I sing songs of love/ And I sing songs of betrayal/ Don’t care what I drink/ I don’t care what I eat/ I climb the mountains with swords on my bare feet”. Dylan já é um veterano, e esse é o desenvolvimento de uma ideia presente na música inteira, como no quarto estrofe, onde ele mostra que sua geração já está indo aos poucos: “I’m first among equals/ Second to none/ The last of the best/ You can bury the rest/ Bury ’em naked with their silver and gold/ Put ’em six feet under and I pray for their souls”.

Esse estrofe em especial é peculiar considerando que Dylan nunca foi o homem dos holofotes, com o ouro e a prata, e sempre esteve por trás dos sucessos alheios, escrevendo músicas que fariam sucesso nas vozes de outros — de Peter, Paul and Mary até Adele.

Nesse ponto eu já ouvi o álbum a segunda vez inteira e estou numa terceira. São 19:20, ainda do dia 19 de junho.

“My Own Version of You” é uma música estranha, no melhor dos sentidos. Como Frankenstein, Dylan está montando uma criatura, mas não um monstro. Ele procura os maiores dos virtuosos e usa as virtudes deles para “bring someone to life, someone for real”. Al Pacino, Marlon Brando, Júlio César, Leon Russel (compositor pop envolvido em diversos sucessos ao longo de toda sua vida até morrer em 2016), Liberace, São João Evangelista, São Pedro, são algumas das figuras que Dylan mantém como ideal para aquele que será trazido à vida. No final das contas, é Dylan procurando o pináculo absoluto na moral do indivíduo, o que torna a música estranhamente sobre Deus. Essa música foi diferente em cada uma das vezes que foi ouvida, e certamente mais e mais emergirá dela com o tempo.

Outra coisa interessante é o ataque de Dylan a Freud, o colocando ao lado de Marx como “alguns dos mais famosos inimigos da humanidade.” Não é a primeira vez que Dylan menciona Marx de maneira negativa, mas Freud tem sua estreia no último estrofe da música, que cresce muito comparativamente ao resto da música pela duração esticada.

Em seguida, “I’ve Made Up My Mind to Give Myself to You” vem, com um espírito muito similar a uma canção de Time out of Mind, de 1997. “Make You Feel My Love” é outra canção que apesar de ser escrita com alguma sugestão amorosa pode ser interpretada com olhos religiosos. A primeira vez em que pensei nisso foi com o Bispo Barron, em um episódio do podcast Word on Fire Show onde ele trata sobre a figura de Bob Dylan, um de seus heróis. A diferença é que, ao contrário da música de mais de vinte anos atrás, aqui temos uma referência religiosa direta: “If I had the wins of a snow white dove/ I’d preach the gospel, the gospel of love/ A love so real, a love so true/ I’ve made up my mind to give myself to you”. Mas apesar dessa presença religiosa, Dylan ainda deixa as coisas nebulosas no final: “I’ve traveled from the mountains to the sea/ I hope that the gods go easy with me/ I knew you’d say yes, I’m saying it too/ I’ve made up my mind to give myself to you”.

“Black Rider” é a música mais “crua” do álbum, com instrumentação mais minimalista. Quando ouvi pela primeira vez, umas 20 horas atrás, terminei com arrepios. Ela tem referências ao Great American Songbook, conjunto de obras americanas que Dylan passou interpretando de 2015 a 2017 em três álbuns, ideias bíblicas, e termina numa nota extremamente interessante, quase de confronto com uma figura dura, digna de certa empatia, mas ao mesmo tempo traiçoeira.v

“Black rider, black rider, all dressed in black/ I’m walking away, you try to make me look back/ My heart is at rest, I’d like to keep it that way, I don’t wanna fight, at least not today” é a primeira referência bíblica (ou no mínimo arquetípica, já que está presente no mito de Orfeu, por exemplo) lembrando a esposa de Ló, que se tornou uma estátua de sal ao olhar para trás, para a destruição de Sodoma (não sei fazer citações bíblicas). Não só isso, mas “You fell into the fire and you’re eating the flame/ Better seal up your lips if you wanna stay in the game” também referencia outra história bíblica, dessa vez do livro de Isaías (que já foi inspiração para uma das obras mais famosas de Dylan, “All Along the Watchtower”) onde o profeta tem seus lábios queimados em brasa para limpá-lo de seus pecados.

Então “Goodbye Jimmy Reed” começa, uma das músicas mais peculiares do álbum. Começou com uma referência, partilhada por Captain Beefheart na música “Moonlight on Vermont”, a uma canção tradicional chamada “Old Time Religion” que tem versão até de Pete Seeger. Dada a música anterior, não é nenhuma surpresa algum apreço pela religião tradicional.

Estou na terceira vez e meia (não chega a ser uma quarta mas estamos quase lá) ouvindo o álbum e são 22:44.

“Mother of Muses” é, como o nome sugere, uma homenagem à musa inspiradora de Dylan. O problema é que ela é uma série de eventos, pessoas e coisas. Em um estrofe Dylan menciona os heróis das décadas de 50 e 60 e aqueles que pavimentaram o caminho que ele eventualmente seguiu. “Sing of Sherman, Montgomery and Scott/ And of Zhukov, and Patton, and the battles they fought/ Who cleared the path for Presley to sing/ Who carved the path for Martin Luther King”. Obviamente Dylan está falando do lado Aliado da Segunda Guerra Mundial. Em seguida ele menciona a mais distinta das musas homéricas, Calíope, e chama pela Mãe das Musas: “Mother of Muses, wherever you are/ I’ve already outlived my life by far”. Isso lembra também “False Prophet” e seus versos sobre ele já ser “o último dos bons”. Já se foram Leonard Cohen, Little Richard, obviamente Elvis e tantos outros. Um a um seus heróis e sua geração vão se apagando.

É conhecido que Dylan tem profundas influências romanas, e em “Crossing the Rubicon” ele adiciona mais uma referência à lista. O rio Rubicão foi por onde Júlio César atravessou, iniciando a guerra civil romana, que terminou com César sendo proclamado imperador. É conhecido que Dylan sempre teve fascínio por história romana, e já falou que caso as coisas tivessem sido um pouco diferentes, ele teria terminado sendo professor disso. As referências nos álbuns dos anos 2000 são conhecidas e frequentemente consideradas “roubos”. Modern Times de 2006, por exemplo, é cheio de trechos de Ovídio, o poeta do exílio, e Virgílio. Mas minha referência favorita até hoje é de Love and Theft, de 2001, na música “Lonesome Day Blues”: “I’m gonna spare the defeated, boys, I’m going to speak to the crowd/ I am going to teach peace to the conquered/ I’m gonna tame the proud”, com sua clara inspiração sendo na Eneida: “but yours will be the rulership of nations/ remember Roman, these will be your arts/ to teach the ways of peace to those you conquer/ to spare the defeated peoples, tame the proud”.

Não só isso, a guerra civil romana tem outra aparição na carreira do Dylan, também no álbum Love and Theft. Em “Bye and Bye”, temos: “Papa gone mad, mama she’s feeling sad/ Well, I’m gonna baptize you on fire so you can sin no more/ I’m gonna establish my rule through civil war”, com variações em versões ao vivo para “Papa gone mad, mama she’s feeling sad/ I’ll establish my rule through civil war/ Bring it on up the ocean’s floor/ I’ll take you higher just so you can see the fire”.

Então “Crossing the Rubican” revive um espírito de guerra para unificação, ou algo similar a isso. É revivida a ideia de Fim do Mundo e Renovação² em termos religiosos. A guerra como aquilo que vai trazer a ordem ao terminar. O fim como aquilo que vai permitir um novo começo. A música é essencialmente a jornada de iniciar o processo de mudança, de separar o passado trágico do futuro esperançoso, ainda que acabe em alguma forma de sujar as próprias mãos. Como Dylan mesmo fala, “Well, you defiled the most lovely flowers/ In all her womanhood/ Others can be tolerant/ Others can be good/ I’ll cut you up with a crooked knife/ Lord, and I’ll miss you when you’re gone/ I stood between Heaven and Earth/ And I crossed the Rubicon”.

São 23:43 e não vou conseguir mais publicar no mesmo dia do lançamento. Ainda tenho que fazer uma imagem.

“Key West” é uma reiteração de um tema na carreira de Dylan. São as “Visions of Johanna”, as “Highlands” e a jornada de “Isis” tomando uma nova forma. E ela começa com um dos pilares da carreira de Dylan: a história americana. Os primeiros versos são sobre William McKinley, presidente americano que foi baleado em guerra e sucedido por Theodore Roosevelt.

A música em si é uma jornada de Dylan em busca de algum ideal incompreensível, assim como nas músicas mencionadas anteriormente, e essa incompreensão é explícita em contradições claras: “Key West is the place to be/ If you are looking for immorality”*, “Key West is the gateway key/ To innocence and purity”. O fato de ter algum espírito alucinante (“China blossoms of a toxic plant/ They can make you dizzy, I’d like to help you but I can’t/ (…) Well the fish tail ponds and the orchid trees/ They can give you that bleeding heart disease”) também indica algo nessa direção. Aliás, a menção a algum tipo de efeito alucinante também faz uma ponte entre gerações que Dylan assistiu: a dos beatniks explicitamente mencionados na canção e a dos hippies. Não que seja uma referência a ele, mas um dos personagens que também viu essa transição foi Ken Kesey, autor americano profundamente associado à psicodelia e usuário de drogas alucinógenas.

Dylan ainda fala de sua relação com o judaísmo (interpretação brilhante que roubei do Genius, para ser honesto): “Twelve years old, they put me on a suit/ Forced me to marry a prostitute/ There were gold fringes on her wedding dress/ That’s my story, but not where it ends/ She’s still cute, and we’re still friends”. Nesse trecho, Dylan referencia seu bar mitzvah, que aconteceu na idade de 12 anos, e se comparou a Oséias, que se casou com uma prostituta, e nesse caso a prostituta é o Torá, com “margens douradas” em um branco de “vestido de casamento”. Apesar de ele ter rejeitado o Judaísmo em si e ter se convertido ao Cristianismo, a tal prostituta “ainda é bonita, e ainda somos amigos.”

São 00:12 do dia 20 e eu acabei de perceber que o Judaísmo foi representado por uma prostituta.

E enfim chegamos ao fim do álbum, com a primeira música que foi lançada. “Murder Most Foul” é um marco, e não só pelos motivos comerciais mencionados. De todas as canções de Dylan com mais de dez minutos, essa é a única que não tem uma repetição mesmerizante quase ritualística na melodia. Como foi dito no começo, ela inicia com seu clímax e depois vai para a descrição, contextualização, andando de trás para frente no tempo. Mas a melodia faz o contrário, ela vai crescendo e crescendo. É uma música muito única na carreira do Dylan no geral. Em 14 minutos “Tempest,” apesar de fantástica, não teve melodia que criasse um “build up” de narrativa.

Repetindo mais uma vez, a letra começa com o clímax, a melodia termina com seu clímax. Todo o contexto é um clímax, todos os artistas que Dylan menciona são a parte mais importante da história.

É um álbum de Bob Dylan que finalmente termina numa nota positiva, algo incomum. Tempest terminou com um lamento sobre John Lennon, Modern Times com “Ain’t Talkin’” enumerando pequenas (e grandes) tragédias, Love and Theft, que é um álbum no geral bem-humorado, com “Sugar Baby”, uma música introduzida com Dylan lamentando a luz do sol e termina com a indiferença de “You went years without me/ Might as well keep going now”. Mas agora… agora finalmente terminamos com uma epopéia de tudo que tornou a cultura americana tão rica.

Precisei de mais de 24 horas para fazer esse texto — são 00:32 — , e sinto que precisarei de muito mais para verdadeiramente digerir o que ouvi. Rough and Rowdy Ways é um álbum muito, muito bom.


* Quando ouvi a música pela primeira vez, foi isso que entendi, mas depois descobri que a letra na verdade era "Key West is the place to be/ If you're looking for immortality" (imortalidade em vez de imoralidade). Isso altera muito o aspecto que mencionei da música, e faz o Dylan não lidar mais com contradições humanas, mas um ideal abstrato de absoluta grandeza.

** Isso ficou confuso, mas meu ponto é que ao mesmo tempo que a morte de Kennedy é o tema e clímax da narrativa, os artistas líderes e suas influências que Dylan menciona ao longo da música também representam uma espécie de clímax, com a instrumentação fazendo uma alusão a isso, crescendo cada vez mais ao que Dylan vai falando sobre essas pessoas.

¹ Eliade, Mircea. Mito e Realidade, chapter 4

² Eliade, Mircea. Mito e Realidade, chapter 3