Carta de Amor Aberta para PewDiePie (ou Carta Aberta para YouTubers de Mente Aberta)

Ao longo dos últimos meses, revi todos os vídeos disponíveis do PewDiePie de 2017. Foi o ano em que comecei a assistir e acompanhar de fato um homem que eventualmente se tornou um dos meus maiores heróis.

A história de Felix Arvid Ulf Kjellberg já foi contada várias vezes, mas até hoje não vi alguem que mostrou exatamente a maneira como ele é uma inspiração para tantas pessoas especialmente por volta da minha idade. Meu primeiro contato com Pewds foi ainda em 2013, por causa de... Flappy Bird. Na época, não entendi o apelo do jogo e esqueci-me da existência do sueco por anos. Para ser sincero, esse tipo de vídeo continua não estando no meu interesse e até hoje não acho que revi seu let's play de Flappy Bird, que saiu há mais de 10 anos. O que realmente me chamou a atenção para o Felix foi algo muito mais próximo de mim — briga com jornalistas.

Bom Senso

Outro dos meus heróis é Bob Dylan, uma figura que notoriamente nunca se deu muito bem com jornalismo. Minha obsessão com Bob Dylan existe desde meados de 2011, certamente já estava engrenada e a todo vapor em 2012 e apesar de ter tido seus baixos, especialmente em 2020 e 2021, é inegável que teve um efeito profundo sobre minha personalidade. O melhor exemplo de Dylan contrastando com jornalistas é numa famosa entrevista para a Time em 1965, em que não leva nem um pouco na boa ao ser perguntado "você liga para o que canta?" Nas palavras do músico, em sua autobiografia Chronicles,

I was sick of the way my lyrics had been extrapolated, their meanings subverted into polemics and that I had been anointed as the Big Bubba of Rebellion, High Priest of Protest, the Czar of Dissent, the Duke of Disobedience, Leader of the Freeloaders, Kaiser of Apostasy, Archbishop of Anarchy, the Big Cheese. What the hell are we talking about? Horrible titles any way you want to look at it. All code words for Outlaw.

Apesar de ter tido esses momentos ruins com jornalismo, ele ainda conseguia tirar algo de proveitoso ao... tirar sarro de jornalistas. A também famosa conferência de São Francisco de 1965 tem perguntas estúpidas sendo feitas para ele a todo instante, logo de cara tendo "eu gostaria de saber o sentido da capa do seu novo álbum, Highway 61 Revisited", quando na realidade Dylan sequer tinha pensado muito na imagem. Queriam tirar significado até de uma camisa com uma estampa de moto. E quando pressionado para falar de coisas mais "sérias", ou recebe acusações mais sérias, ele também aprendeu a lidar com certo humor. Para a Rolling Stone em 2007:

In a general political, spiritual, historical sense. You’re talking about the end of times on this record, you’ve got a very gloomy vision of the world, you’re saying, "I’m facing the end of my life and looking at all this. . . . "
Aren't we always doing that?

No, some people are trying to avoid it. But I’m trying to interview you, and you’re not being very helpful with this.
Jann, have I ever been helpful?

No final de 2016 — para contextualizar meu papel de observador nessa história, tenha em mente que eu tinha 15 anos em 2013 e três anos para alguém nessa faixa etária é um longo período de muitas mudanças — PewDiePie fez uma piada que chamou atenção dos jornalistas americanos que, na época, estavam enlouquecendo com a possibilidade eventualmente concretizada de Donald Trump se eleger presidente. Basicamente, para resumir uma história que já foi contada milhares de vezes, Felix estava explorando o site Fiverr, em que pessoas essencialmente "topam tudo por dinheiro". Para alguém que se oferecia como teammate de Hearthstone, ele pediu para jogar Roblox, por exemplo, e a pessoa se recusou, afinal elas obviamente não são proibidas de recusar algum trabalho. Como uma piada (bem edgy, eu sei) ele pediu para dois indianos dançarem e dizer "SUBSCRIBE TO KEEMSTAR" ("se inscrevam no Keemstar") enquanto levantavam uma faixa dizendo "DEATH TO ALL JEWS" ("morte a todos judeus"). A piada, obviamente, era tentar fazer parecer que o Keemstar, um youtuber de fofoca internetesca, era antissemita. Mais do que isso, Felix não achava que iriam aceitar algo tão ofensivo e disse no mesmo vídeo que não se sentia bem. O vídeo ainda está disponível ainda que Felix tenha tirado de seu canal, e ele explicitamente fala que não se sentiu bem com aquilo, e que esperava que os indianos recusassem devido a quão absurdo o pedido foi. Parte da graça do vídeo é a subversão de algo tão horrível como o pedido de morte de uma etnia inteira ter sido tratado como algo comum. Mas para jornalistas, contexto não importa.

Desde meus 13 ou 14 anos eu já sabia que jornalistas são, por via de regra, criaturas mal intencionadas que gostam de parecer mais inteligentes do que realmente são. Obrigado por isso, Bob Dylan, mas para a maioria das pessoas isso ficou claro nos anos de 2016 e 2017. Apesar de eu não considerar Pewds parte do fenômeno do gamergate, é assim que a mídia enxergava tudo. Gamergate = PewDiePie = 4chan = Donald Trump = Hitler. Donald Trump era uma ameaça existencial para essas pessoas, e tudo era motivo para enxergarem nazistas em todas as partes. Em um post em seu falecido blog no tumblr, Pewds disse que a obviedade de que seus vídeos são de entretenimento, que existe alguma coisa de engraçada no fato daqueles indianos terem realmente levantado um cartaz dizendo algo tão absurdo quanto "MORTE A TODOS JUDEUS", e que não estava interessado em fazer comentários políticos, mas isso é um conceito incompreensível para pessoas que enxergam tudo sob essa lente. Isso inclui a direita que, apesar de estar puxando saco da autora J.K. Rowling por causa de suas opiniões controversas sobre transexualidade, vale lembrar que essa mesma mulher em 2017 estava chamando o maior herói da história da internet de nazista em um tweet que até hoje está disponível.

O Gamergate é outra história que já foi contada milhares de vezes, e pode ser resumida a gamers, nerds que mais se assemelham ao antigo meme do gordo granudo que a pessoas do dia-a-dia, descobrindo que jornalistas mulheres trocavam favores sexuais por posições cada vez mais altas e influentes e, também, por boas avaliações de jogos. Em The New Right, Michael Malice tem um capítulo dedicado ao fenômeno, que foi o ponto de propulsão de Milo Yiannopoulos, e mostra como a mentalidade do gamer tradicional, que faz parte da subcultura que existe há décadas, entrou em combate com esse progressismo evangélico que estava crescendo na época da eleição de Donald Trump. Apesar de a maioria dos gamers ser de esquerda, o mundo dos videojogos não fazia parte (ainda) da histeria política que temos desde a segunda metade da década passada, e isso vale para a época de que estamos falando aqui: o vídeo do Pewds sobre o Fiverr foi no final de 2016. Nas palavras de Malice,

Their hobby — not their job, but what they do for fun — consists of living in worlds created by others, figuring out the rules those worlds operate under, and then bending or even breaking those rules to get the result that they want. They also have an enormous amount of spare time and are quite prone to thinking logically and systematically when it comes to achieving their goals.
(...)
Gamergate was the probably the first time the evangelical left came up against an enemy who was completely focused on tactics and completely uninterested in how or why they were saying what they were saying. The goal was to clear the playing field of the enemy, and to do that one needed to understand the programming.

Assim como os gamers descobrindo e expondo jornalismo comprado não eram pessoas politizadas, PewDiePie também não era. Quando a mídia começou a chamar Felix de nazista, o StormFront, o maior fórum alt-right do mundo, como uma piada colocou um banner dizendo que era "the #1 PewDiePie fansite". Claro que isso foi usado contra Felix em uma série de artigos do Wall Street Journal tentando destruir sua credibilidade (depois eles se autodenominaram "the #1 Wall Street Journal fansite", mas ninguém falou disso).

Felix percebeu que jornalismo é algo intrinsecamente amoral e que utiliza de ataques como maneira de se manter vivo (afinal, pessoas são muito mais sensíveis a notícias negativas que positivas) muito tempo antes, ao perceber que todas entrevistas que ele dava sempre acabavam falando de dinheiro. Pior, em 2013 a Variety chegou a dizer que se PewDiePie é o maior talento do YouTube, estamos condenados. Não sei por que estaríamos condenados por alguém estar entretendo pessoas na internet, mas tudo bem. No excelente vídeo chamado "My Response" (que foi deletado, o que está em pé até hoje é sobre... outro acontecimento), ele fala sobre isso e sobre como a mídia tradicional não gosta de personalidades de internet, um ponto que é perfeitamente associável ao espírito do Gamergate, mas não acho que seja tão válido em 2023.

Em um vídeo de um pouco antes, ele explicou perfeitamente:

Até hoje acredito que as pessoas que viram como que tudo aconteceu de cabo a rabo não conseguem levar a sério absolutamente nada que a mídia fala. Teoricamente, é de se esperar que diferentes jornais tenham opiniões diferentes, mas essa história deixou claro que existe uma diferença entre mídia corporativa e seja lá o que pessoas como Felix representam. Como ele mesmo diz em "My Response", a mídia oldschool não gosta de pessoas que surgem de maneira não-corporativa porque eles têm medo. Ele chegou a dar entrevista em 2014 para o WSJ para tentar contar a própria história (que é muito inspiradora e Felix é quase um herói randiano nela, vivendo de vender cachorro-quente apenas para sustentar o sonho — na época inimaginável — de viver com dinheiro da internet fazendo vídeos), mas obviamente só falaram de dinheiro, ainda que ele mesmo nunca faça questão de falar publicamente sobre dinheiro. Tudo que jornalistas fazem com aqueles que representam a menor das ameaças é atacar, independentemente da verdade. Não precisava nem fazer parte da audiência de Kjellberg para saber o que aconteceu, dadas publicações da época em fóruns de MMA, mas fazer parte e ver de perto o que estava sendo feito mostrou com clareza absoluta qual a intenção dessas pessoas.

Essa história inteira, que descobri no começo de 2017 e em pouco tempo já entendia melhor do que qualquer jornalista médio, me fez ficar fascinado na figura. Foi algo que aconteceu com vários outros (incluindo outro herói pessoal meu, Norm Macdonald, atacado por defender Louis CK durante o Me Too) na época, mas ele era literalmente o maior youtuber do mundo na época e lidou com essa situação de maneira esplêndida. Até hoje, o vídeo que mais sugiro para as pessoas para provar ou o ponto de que jornalismo é um lixo ou de que Pewds é uma pessoa que foi injustiçada (e talvez meu favorito dele) é um exatamente desse contexto:

Desde então, não perco um vídeo do canal PewDiePie.

Verdadeira Fórmula do Sucesso

Apesar do meu interesse inicial ter sido por questões tangencialmente relacionadas a política, eu não sou uma pessoa que gosta tanto assim de discutir política mainstream, muito menos de ouvir opiniões de pessoas da internet no geral. O fator que me prendeu no canal era puramente o fenômeno PewDiePie, mas eu fiquei porque Felix Kjellberg é genuinamente uma pessoa impressionante, inspiradora, extremamente sensata e, ao que tudo indica, boa.

Tentando resumir os motivos para eu gostar tanto dele, cheguei aos seguintes itens:

  1. PewDiePie é extremamente genuíno e criativo;
  2. PewDiePie foi uma força positiva e orgânica na internet;
  3. PewDiePie é legitimamente sensato;
  4. PewDiePie é engraçado.

Sobre o ponto 1, já com um tempo considerável de carreira no YouTube, de 2016 para 2017, ele percebeu que deveria fazer conteúdo só sobre o que gostava e queria por uma questão de saúde mental. Ele não tinha interesse em ser somente um boneco sob amarras de tendências externas, e eu diria que ele conseguiu muito bem fazer isso. Eu diria que isso é reflexo da mesma coragem que ele teve em largar a universidade para fazer vídeos na internet, ainda que isso significasse ter que vender cachorro-quente para se sustentar enquanto não fazia sucesso. Não acredito que exista um único fã do Pewds que duvide disso, vendo ele mudar de vídeos saindo no meio da rua fazendo metacomentários sobre o YouTube a criar histórias inteiras com personagens em Minecraft, ou como ele descendeu à loucura jogando algo como Getting Over It. Por via de regra, Felix estava ignorando completamente tendências e criando seus próprios nichos — falando sobre Chris Chan em 2017, jogando jogos que não tinham muita visibilidade como Finding Paradise ainda que recebesse pouca visualização, comentando sobre não gostar de filmes da Marvel no ápice do hype do negócio. Eu nunca fui de assistir let's plays, apesar de também não concordar com a visão boomer de "por que vou assistir alguém jogar um jogo quando eu mesmo posso jogar?", mas assisti vários e vários do Pewds puramente por seu carisma, criatividade e senso de humor.

Sua influência foi orgânica, cresceu espontaneamente e genuinamente moveu milhões de pessoas. O próprio gênero de vídeos de let's plays era algo que apesar de ser, hoje, lugar comum no YouTube, era muito criticado quando ele começou, mas ele ajudou a tirar o estigma e aos poucos foi se tornando uma pessoa querida. Foi mágico quando o mundo inteiro, literalmente, se uniu para apoiar e propulsionar o homem quando uma "ameaça corporativa" chegou no YouTube. A época da "guerra" com a T-Series foi fascinante, eu mesmo fiz minha parte colando cartazes pró-PewDiePie na UnB, e esse movimento foi algo puramente positivo que instituições como jornais nunca conseguiram fazer. É inquestionável, também, que Pewds foi uma influência positiva na internet, frequentemente sendo uma voz da razão trazendo conteúdo interessante para um público que não necessariamente associaria seu conteúdo a isso. O melhor exemplo é algo que começou como uma série em 2018, Book Review, cujo título é uma piada extremamente fechada para quem assiste ele, aliás, e suponho ser parcialmente inspirada pelo excelente jogo Doki Doki Literature Club, o qual ele jogou no final de 2017 e é diretamente referenciado nos primeiros episódios com sua também excelente trilha sonora. Felix, na vida real, decidiu ler mais livros no ano de 2018 e, falando sobre isso no Twitter, rede social que ele só foi abandonar no ano seguinte, surgiu interesse de algumas poucas pessoas, e ele decidiu ao melhor espírito de sua nova liberdade de criação de conteúdo, falar sobre um tema que não era muito popular. Ele leu livros de Sapiens à Ética a Nicômaco, e novamente não se importou com opiniões gerais, dando um review negativo para Fahrenheit 451, um positivo para 12 Regras para a Vida e tantos outros inesperados. O que acho particularmente impressionante foi ele ter lido Kierkegaard, que não é um autor particularmente acessível, e ter tirado conclusões extremamente interessantes, se expondo com consciência de que poderia ser criticado até academicamente. Até Fernando Pessoa ele leu, sugeriu e até deu um beijo no livro. Ele também fez um review com o qual não concordei nem um pouco do meu livro favorito, Crime e Castigo, mas ainda assim foi muito bom de vê-lo comentar sobre essa obra. Alguns outros clássicos de que ele falou incluem Don Quixote, Moby Dick, A Metamorfose, O Retrato de Dorian Grey e tantos outros.

Felix não gosta de drama internetesco, nunca gostou disso, mas por algum tempo ele pareceu achar que seria capaz de trazer certo nível de sensatez para a discussão online. O ponto 3 não é apenas sobre isso mas sua antiga série Pew News é um excelente exemplo de como com alguma frequência ele era a voz da razão no meio de uma comunidade que facilmente caía em mentalidade de manada. Por exemplo, em um episódio deletado ele comenta sobre o caso de Count Dankula, um comediante que passou por algo tão absurdo quanto a acusação de nazismo que ele teve um ano antes, parodiando toda a sinalização de virtude que aconteceu ao custo de Dankula ir para a prisão. Ou então, quando o youtuber de maquiagem James Charles começou a ser cancelado por uma amiga próxima sem motivos aparentes, ele foi um dos poucos a realmente analisar o que estava acontecendo e mostrar que era uma questão de picuinha. Quando sentiu que patrocínios da empresa BetterHelp estavam se tornando um potencial motivo para um segundo adpocalipse, também falou sobre o assunto de maneira cheia de nuances. Eventualmente, ele parou por completo de comentar sobre essas coisas e parou de gravar episódios dessa série de notícias, até deletando vários episódios (nisso, todos envolvendo controvérsias próprias nas quais ele tinha claramente razão — estou de olho, "Twitch THOTs") porque simplesmente não tem interesse em drama internetesco e passou a achar que os vídeos estavam sendo mais negativos do que positivos simplesmente por alimentar esse tipo de cultura.

Uma coisa que poucos lembram é que ao mesmo tempo em que ele criticava youtubers irresponsáveis, ele nunca foi favorável à reação que a internet frequentemente tomava contra eles ainda que eles estivessem errados. O melhor exemplo é Logan Paul, que nos primeiros dias de janeiro teve o incidente da floresta do suicídio no Japão, e em alguns dias estava sendo criticado por absolutamente toda a internet. Nem nesse caso, ele foi favorável a coisas como banimento ou desmonetização do ex-viner, até mesmo porque ele sabia na própria pele como essas coisas são dolorosas. Eu não consigo não me lembrar do Norm Macdonald com o Louis CK, dizendo que a punição do cancelamento era eterna e sem piedade. Massas não têm piedade.

Para ser justo, ele foi duro com Tana Mongeau, mas por um motivo muito mais grave. Em seu evento TanaCon, ela colocou em risco a vida de fãs ao planejar muito mal um evento até mentindo sobre presença de estrelas lá, inflando o número de atendentes consciente de que o lugar não tinha capacidade para tanta gente, o que acabou em causar problemas de saúde a alguns envolvidos.

Por causa das controvérsias nas quais ele se meteu ao longo de sua carreira de YouTuber, ele sabe exatamente o que deve ser feito: tomar responsabilidade por tudo que causa problema, mas ao mesmo tempo não abaixar a cabeça para multidões cegas querendo cortar a cabeça. Jogando PUBG em 2017, ele deixou a palavra escapar — "what a fucking nigger". Não foi direcionado a ninguém em específico, mas é claro que foi uma controvérsia gigantesca e, no mínimo, uma irresponsabilidade por causa dele. Ele não tentou se defender dessa vez, e realmente achou que passou da linha ainda que sem querer. E, de maneira perfeitamente coerente, admitiu o erro no vídeo My Response. Apesar disso, ele não deixou de fazer piadas com a situação inteira, sem se martirizar ou se colocar acima de qualquer pessoa que passou por situação similar:

Ainda que ele sentisse alguma culpa, não mostrava traço algum de moralismo barato.

Como outro exemplo, depois de manter um meme recorrente em seu canal de "respect women", fazendo chacota da paranóia feminista de que tudo é conspiração contra as mulheres, ele manteve o comentário mais sensato o possível sobre todo o Me Too e a sinalização de virtude envolvida. Para Felix, a quantidade de homens publicamente condenando crimes que frequentemente eles viam ou eles mesmos praticavam é uma maneira de se defender de um cancelamento, de proteger seus próprios podres de virem à tona, e esse comportamento se estende para a hipocrisia de pessoas que querem derrubar as outras se baseando em questões morais. "É quase como se fosse super fácil de falar que você é uma boa pessoa em vez de agir como uma boa pessoa, quem diria! (Vale destacar que nesse vídeo, acho que ele errou ao dizer que para a própria geração e a futura, ou seja, a minha, contexto seria mais importante do que esse tipo de sinalização de virtude. Acredito que isso só vale para o fim da geração millenial e o começo da geração Z. Na época, eu também achava que as coisas seriam melhores quanto a paranóia política, mas o puritanismo politicamente correto de 2023 não me deixa mentir.)

Os exemplos de sensatez desse homem são inúmeros e incontáveis, então não vou me estender mais tanto e finalizar com um que complementa bem todos os outros. Em um vídeo sobre odiar o Twitter, Pewds fala sobre sinalização de virtude sob a visão de... Aristóteles. Fazendo uma análise perfeitamente sensata sobre como o Twitter recompensa (não em termos financeiros, como hoje, mas meramente em dopamina) o péssimo hábito de apontar o dedo moralista na direção dos outros e julgar pessoas como sendo boas ou más. O Twitter realmente causa mentalidade de manada, e incentiva uma desjunção entre discurso e ação que Pewds aponta perfeitamente. Usando a Ética a Nicômaco como base, ele fala de como a virtude deve ser praticada para ser cultivada, é uma questãode hábito, e comenta sobre a virtude ser o ponto médio entre vícios, dando de exemplo, dentre outros, o fato de que "se você se ofende demais com humor, você é desinteressante, e se você faz piadas demais, é jocoso".

Você consegue imaginar alguma outra pessoa na situação dele fazendo conteúdo dessa forma? Você, brasileiro, consegue imaginar o Felipe Neto fazendo isso?

Por último, ele é extremamente bem humorado e fácil de se identificar. Na vida real, nunca negou ser um cara "estranho", meio nerd, e esse tipo de descrição faz pessoas assim perceberem que existem outros como elas. A expressão daquilo que todos sabem que existe mas não se vê por aí é em si um atrativo. Quanto ao seu senso de humor, naturalmente isso é algo subjetivo, mas confesso que até hoje uso algumas expressões que se tornaram memes internos de seu canal em 2017 ou 2018 ("mad lad", "very nice"), e a acidez de seu humor também sempre está presente, ainda que maquiada para evitar drama e fofoca nos anos recentes.

Em 2017, a internet era muito menos sensível do que em 2023, e isso era refletido no que as pessoas falavam. Jogando Player Unknown Battlegrounds, ele deixou a palavra proibida escapar, mas também houve diversos outros acontecimentos similares com palavras ofensivas. Por exemplo, esse aconteceu antes, e mesmo assim ele sabia que a piada era desnecessariamente ofensiva e sem tanta graça (o que torna particularmente engraçado para mim):

Coisas podem ser engraçadas por quaisquer motivos para diferentes pessoas, não existe fórmula ou receita de bolo para ser engraçado. O senso de humor edgy da internet de 2017 era extremamente criativo, o que era fascinante. No podcast Trash Taste, ele disse que seu período favorito do YouTube era "antes do adpocalipse", por ser o "wild west" em que as coisas eram menos formulaicas, menos polidas, e ninguém seguia uma cartilha específica. Essa é a era em que o senso comum era zoar pessoas da mídia antiga, falar coisas que não eram comuns na "vida real" e fazer piadas sobre pautas que a internet desprezava. A politização da internet cotidiana é algo muito recente, e definitivamente foi algo acelerado a partir da eleição de Donald Trump nos EUA e, aqui no Brasil, de Jair Bolsonaro.

A internet não era sensível. Certa vez ele foi protagonista de um artigo sobre "gamers tóxicos" (tóxico, aliás, uma expressão que foi importada dos EUA), e em vez de se defender ele disse que, apesar de estar errado em deixar a palavra "nigger" escapar durante a livestream, ele não vê problema com toxicidade em jogos porque jogos em si são uma forma de desestressar. "Muta o jogo, não é difícil! (...) Toxicidade é parte do jogo, muitas vezes é usada propositalmente para distrair outros jogadores e ganhar". Só faltou adicionar que jornalistas que escrevem artigos desse tipo nunca saberiam de estratégia e funcionamento de jogos porque eles não sabem jogar jogos.

Sabem aquele tweet do Tyler, the Creator? Pois é.

Humor ruim também era muito mais aceito como humor do que nos últimos tempos. Tentativas de piadas que não davam certo, como algumas pessoas podem ter visto o caso dele com a Fiverr, eram lugar comum naquela era. Hoje, acho que nem tentariam com receio de serem cancelados (ainda que cancelamento seja algo mais psicológico do que qualquer outra coisa). Por exemplo, nas legendas brasileiras de um de seus vídeos do jogo Getting Over It, é cheio de piadas sobre gays, algo que o próprio Felix não fez no vídeo. Era costumeiro nessa época adicionar legendas por fãs com comentários deles mesmos tentando ser engraçados. E, sinceramente... não tinha graça nenhuma. Mas ninguém se sentia ofendido, também. Piadas ruins são isso, piadas ruins.

Em particular, eu sempre gostei dele expondo jornalismo. Quando Cuphead, um dos meus jogos favoritos, foi lançado, debates sobre dificuldade de jogos começaram a surgir em todo canto. Um jornalista que não conseguiu passar do tutorial do jogo viralizou — imagine ser ruim a esse ponto em qualquer coisa e ainda assim trabalhar com isso. Felix não jogou tanto Cuphead, e mesmo assim conseguiu avançar um tanto no jogo, se divertindo nos vídeos, sem entender pessoas que pediam opção de "pular boss" (qualquer um que conhece o jogo sabe que ele é composto em 80% por chefões). Ele conseguia tornar um assunto que eu tinha interesse tangencial à raiva em algo genuinamente engraçado. Não sei vocês, mas prefiro ver graça em algo a sentir raiva.

É uma ligeira decepção ver que parte da fanbase do Felix tenta jogar os incidentes de 2017 num limbo de esquecimento (já ouvi dizerem que ele precisou "acordar" para o que estava fazendo — mas o que ele estava fazendo?), mas é de se esperar que especialmente os zoomers mais novos sejam assim. Mais do que isso, acho quase impossível que alguém que acompanhou os anos de 2017 em diante (2016 também foi bom, mas isso já sou eu comentando tendo assistido em retrospectiva) tenha essa cabeça. Estejam essas pessoas cansadas de drama como o próprio Pewds ou não, é impossível voltar a acreditar em qualquer coisa que é dita por jornalistas.

Agradecimento de 2023

Anos depois, as coisas mudaram bastante. Com plataformas cada vez mais interessadas em regular o tipo de conteúdo que acontece nelas e o SEC fazendo de tudo para impedir a antiga liberdade, às vezes é difícil ver uma luz no fim do túnel. O youtuber History of Everything fez um vídeo excelente sobre a história do adpocalipse e como isso influenciou o conteúdo da plataforma, e uma das coisas que ele frisa bastante é o quanto as pessoas que criam conteúdo na plataforma estão pisando em ovos e sendo cada vez mais sensíveis. É uma perspectiva relativamente sombria e pessimista. Mas as coisas não precisam ser assim.

Hoje, Felix é uma pessoa em um momento muito diferente da vida. Ele tem uma família, dois cachorros e está morando no outro lado do mundo (até para quem morava na Inglaterra!) e provavelmente não liga mais para nada disso, mas o impacto que ele teve nesse período curto é imensurável. Somente sendo uma pessoa perfeitamente razoável, ele mostrou para pessoas do mundo inteiro como enxergar além da realidade que nos falam, e mostrou que expressividade é algo importante. Ele conseguiu sair vitorioso aos olhos do público em batalhas contra meios como Wall Street Journal e Vice e até mesmo até mesmo sistemas educacionais! Ainda que os inimigos fossem poderosos, ele conseguiu sair vitorioso e emocionou a internet inteira em momentos como o seu casamento com Marzia Bizognin, que conheceu através da internet, muito antes de seu sucesso meteórico, e com o nascimento de seu filho Björn.

E a parte mais importante: sendo uma pessoa interessante e engraçada. Felix nunca falou de assuntos diretamente políticos, nunca teve interesse nessas coisas, e ainda assim dissecou incontáveis acontecimentos que têm reflexo nela. Se você acha que entretenimento é puro escapismo, talvez aqui seja um exemplo (positivo) de que não é esse o caso.

Ele acabou com o Pew News por ser algo que alimentava drama internetesco, mas a sensatez que sempre demonstrou nesse quadro se espalhou pela internet através de seus fãs. Ele pode ter superado o humor mais edgy e ácido de 2017, como já falou em um QnA (ainda que pouco tempo depois tenha feito uma piada engraçada envolvendo racismo), mas o que ele fez no primeiro adpocalipse, traçando uma linha e dizendo que dela não passava, que não pediria desculpas por algo que não fez, e que não se curvaria para pressões corporativas é prova de um caráter raro que protege expressão de pessoas de todo tipo, sejam elas do tipo que fazem piada com voz de animais ou com jogar prostitutas de pontes. Não é possível ignorar, também, que é extremamente cansativo lidar com controvérsias, e ver o que era para ser uma opinião mediadora apenas alimentar mais o drama internetesco provavelmente não vale a pena o esforço.

Apesar de plataformas como o YouTube estarem, de fato, cada vez mais formulaicas e cada vez mais auto-censuradas, ainda existe a expressividade na internet. Algumas coisas como o fato do Elon Musk ter comprado o Twitter ainda garantem um pouco mais de livre expressão, por mais que ela não seja perfeita, e algo que pessoas que gostam de reclamar do estado das coisas nunca entendem é que sim, as coisas até podem estarem ruins — mas comparadas ao que? A caixa de Pandora de censura no YouTube foi aberta e, no fim das contas, não temos como voltar para os bons-e-velhos-tempos. A escolha é entre plataformas diferentes e conteúdo livre (ao menos em comparação ao que temos em sites como o YouTube) ou monopólio dele e conteúdo censurado.

O YouTube não é mais o end-all be-all e passou a ser só um meio. Plataformas como o Rumble e o Odysee também são meios. Pode não existir mais o senso de comunidade do YouTube, mas não quer dizer que não há alternativas.

Uma das coisas que mais odeio é cinismo desnecessário, e PewDiePie mostrou que, mesmo quando ninguém via futuro em nada que ele fazia, era possível encontrar um caminho. A mesma mentalidade vale aqui — você pode até não conseguir uma carreira fazendo vídeos, mas vai deixar de criar por causa disso? No Brasil, a mentalidade de "acabou-se" é endêmica dentre as pessoas que enxergaram o fato de narrativas mainstream serem descoladas da realidade, mas sempre há uma saída. O problema é que depende exclusivamente das mesmas pessoas que estão sempre reclamando.

Não fui o único a enxergar essas qualidades no homem que por quase uma década foi o rei do YouTube, em janeiro de 2018 já tinha outros enxergando a mesma coisa que eu, e percebendo que o mero fato de ele não se acovardar diante de pressões sociais externas era algo incrível. E a minha intenção era ir um pouco além. Depois de 2018, ele ainda seguiu tendo influência positiva — eu mencionei os vídeos sobre literatura, o "approach" genuíno a jogos, o Pew News e o senso de comunidade na "guerra" contra a T-Series, mas existem vários outros, como ele ajudando pessoas diretamente, tentando ajudar canais menores, fazendo críticas justas que todos sentiam mas ninguém com plataformas relevantes ousava falar (estou de olho em você, Alinity) — e vários desses casos poderiam ser em si temas para textos separados. Ele prova que pessoas boas e genuínas têm espaço onde quer que seja, e que não é necessário prostituir seus valores para ter um espaço online, algo que alguns de seus contemporâneos não aprenderam e pagarão consequências enquanto não entenderem.

Espero que a leva de pessoas inspiradas por Felix Kjellberg consiga de fato criar algo quando quase ninguém vê futuro e, para ser sincero, acho bem provável que isso aconteça. O que mais admiro em PewDiePie é o quanto ele conseguiu fazer de positivo meramente através de expressão honesta de seus pensamentos e suas opiniões, e a internet é uma ferramenta fantástica para isso. Apesar de todo o derrotismo de muitos que partilham do meu senso de humor, das minhas opiniões e dos meus valores, os heróis da internet são prova de que é sempre possível subverter a ordem vigente e criar algo de novo.

Eu sou uma pessoa que valoriza muito a expressividade e gosto de ver todas as maneiras como ela se manifesta, sejam sérias ou irreverentes, edificantes ou vergonhosas. Por me ajudar a ver uma luz no fim de um túnel longo que parecia sufocar tudo isso que eu valorizo, eu agradeço PewDiePie. Obrigado, caro YouTuber de mente aberta.