Aprendendo a Amar com Bob Dylan

I'm falling in love with Calliope
She doesn't belong to anyone — why not give her to me?
She's speaking to me, speaking with her eyes,
I've grown so tired of chasing lies.
Mother of Muses, wherever you are,
I've already outlived my life by far.

— "Mother of Muses", Rough and Rowdy Ways, 2020

No longínquo passado de 2017, o canal do YouTube Bunker do Dio publicou um vídeo entitulado As Canções de Amor de Bob Dylan e, em sua introdução, fala algo com o qual concordo completamente: "normalmente, quando as pessoas vão falar sobre Bob Dylan, elas têm umas tendências estranhas, normalmente a gente intelectualiza a obra (...) mas é preciso lembrar que muitas vezes, quando a gente faz isso, a gente está mais falando da gente do que do Dylan." Mas, como ele bem aponta, as canções de amor de Dylan possivelmente sejam seu auge.

De fato, a carreira de Bob Dylan é uma jornada sobre a música tradicional americana, algo que tem me fascinado, em particular, cada vez mais. Parece existir certo ciclo na carreira do músico em que ele decide, a cada eclipse solar híbrido, homenagear seus heróis musicais. Apesar do Dio ter dado de exemplo de intelectualização, para mim é quase o oposto disso, afinal esses artistas de blues, country e música popular no geral são o melhor exemplo de cultura popular não-comercial. Em muito se confunde música comercial com música popular, mas não consigo ver como "o povo", essa entidade abstrata que carrega de fato as culturas de maneira orgânica, conseguiria investir milhões de dólares para produzir shows com pirotecnia. Vemos muito mais a alma de um povo em um senhor com gota no pé tocando violão do que em festivais de música pop. E nesse sentido, de fato Dylan homenageia música popular desde antes de seu primeiro álbum em 1962.

E é nesse sentido em que gostaria de falar de amor. Não apenas o amor pela música tradicional, ou o amor romântico, mas o sentimento de amor no geral. Claro, é mais fácil pensarmos na carreira de Dylan sob essa lente tendo em mente seus relacionamentos conturbados ("Ballad in Plain D", "Just Like a Woman", "Dirge" e tantas outras) mas, e se levarmos em conta o amor pela sua própria cultura, como fica visível em essencialmente todos seus álbuns do século 21? O álbum Love and Theft, que sempre me lembra daquela tragédia, tem uma música diretamente dedicada a Charley Patton, blueseiro nascido ainda no século 19. Modern Times, o seguinte, tem uma música chamada "Rollin' and Tumblin'", invocando outro clássico de blues do começo do século 20 que tem o mesmo título. Não só isso, ambos esses álbuns são marcados por serem completamente descolados de seus tempos modernos, tendo a sonoridade particularmente antiga, de blues tradicionais. Da mesma forma que ele "roubou" a melodia de "Blowin' in the Wind", ele estava fazendo isso novamente nos anos 2000, pegando as músicas que tanto ama e dando um sopro de vida para artistas quase esquecidos. A melodia de "False Prophet" é uma direta cópia de "If Lovin' Is Believing", de 1954. Quem estaria falando de Billy "The Kid" Emerson não fosse Bob Dylan gerando novo interesse em um blueseiro de 70 anos atrás?

Existem várias maneiras de amar diferentes coisas. Jerry Seinfeld fala que um dos segredos para viver de maneira que encha a alma é aprender a amar (ou se apaixonar?) pelas coisas da vida. Podem ser pequenos prazeres rotineiros, gestos e objetos que a maioria das pessoas sequer perceberia a existência. Talvez, no caso de Seinfeld, isso se expresse em rotinas de comédia sobre supermercados ou expressões rotineiras. Talvez, no caso de Dylan, isso se expresse em sua música.

Amar quem nos fez como somos

Are you in love at the moment?
I'm always in love. [1]

Não é incomum de ver Dylan prestando homenagem a todos seus heróis. Logo em seu primeiro álbum, lá está "Song to Woody", que possivelmente foi cantada para seu primeiro ídolo folk (por favor, não no sentido de adoração) quando ele estava no hospital, onde iria morrer de doença de Huntington em 1967. O álbum New Morning inaugurou "Went to See the Gypsy", que teria sua melhor versão lançada apenas em 2013 no décimo volume da Bootleg Series, uma música homenageando outro de seus heróis, Elvis Presley. "Blind Willie McTell", de 1983, é possivelmente uma de suas melhores canções e não passa de uma homenagem ao blueseiro.

Os exemplos são incontáveis, e todos ajudam a entender um pouco mais do mosaico que forma Bob Dylan. Gostamos de pensar que as pessoas conseguem ser completamente autênticas, mas como diria T.S. Eliot, que luta com Erza Pound na torre do capitão em meio a cantores de calypso (o gênero musical) e pescadores, "poetas imaturos imitam; poetas maduros roubam; poetas ruins desfiguram o que pegam, e bons poetas transformam em algo melhor, ou ao menos algo diferente."

Para Dylan, não é muito diferente. Seus heróis são personagens históricos, artistas, e às vezes sequer correspondem à realidade. No álbum Desire, ele faz um tributo a Joey Gallo, um gângster ítalo-americano associado à morte do chefe da família Gambino, que dominava o crime organizado novaiorquino na primeira metade do século 20. Gallo poderia ter sido, na realidade, um esquizofrênico violento, mas para Dylan ele poderia também ser "King of the streets, child of clay". Outro bom exemplo é com George Jackson, o ativista criminoso associado a política maoista/marxista, a mesma que Dylan explicitamente condenava ("When You Gonna Wake Up", "My Own Version of You"), mas que ainda assim recebeu uma música com seu nome no ano em que foi assassinado.

Na outra face da mesma moeda, ele também tem como heróis figuras da cultura popular, citados em extensão em seu álbum mais recente: Liberace, Nat King Cole, Art Pepper, Stan Getz, Leon Russell. O mundo em que Dylan vive não é o mesmo do meu ou do seu. Nessas horas, percebemos que ele é um velho nascido antes até do fim da Segunda Guerra Mundial, e provavelmente tem alguma memória de notícias da bomba atômica. Ele não enxerga o mundo da maneira compartimentalizada que tendemos a fazer hoje em dia, e temos a aprender com ele.

I'm the first among equals — second to none,
The last of the best — you can bury the rest.
Bury 'em naked with their silver and gold
Put 'em six feet under and then pray for their souls.

— "False Prophet", Rough and Rowdy Ways, 2020

No final dos anos 70 ele começou o que ficou conhecida como sua "fase cristã", o que não faz sentido algum porque Dylan era imerso em imaginário cristão e na Bíblia desde sua infância. Uma pessoa com a cabeça mais moderna talvez não consiga entender o fato dele colocar "Lenny Bruce", sua homenagem ao comediante, no último álbum desse período. E novamente, Dylan elogia seu aspecto de "fora-da-lei".

O que seria seu livro lançado em 2022, The Philosophy of Modern Song senão uma — para usar o clichê cinéfilo — carta de amor à música? A capa do livro é uma foto relativamente obscura de Little Richard com duas figuras menos conhecidas, Eddie Cochran, intérprete de um ou outro clássico, incluindo "C'mon Everybody", um clássico de rockabilly, e Alis Leslie. Quem é Alis Lesley? Uma versão feminina de Elvis Presley! Quando essa foto foi publicada como capa do livro, fui atrás dela, e hoje vejo que ela tem aproximadamente 200 ouvintes mensais no Spotify. Em março de 2022, não era muito diferente — 150 ouvintes.

O que aconteceu com Lesley? Nascida Alice Leslie (o nome realmente soa como "Elvis Presley"), foi um hit local por alguns anos na década de 50 — "Heartbreak Harry" realmente é um banger! — mas sua carreira não a sustentou eternamente. Lesley se tornou uma missionária e professora de canto.

Andy Warhol falou, notoriamente, que no futuro todas as pessoas seriam famosas por quinze minutos. Ele não imaginava que algo como TikTok surgiria e esses quinze minutos passariam para quinze segundos, mas na época de Alis Lesley, isso foi real. Numa época sem internet, esse tipo de figura era capaz de permear o imaginário das pessoas: lembram de tal e tal pessoa que certa vez apareceu em uma turnê com Little Richard, indo até a Austrália? O que aconteceu dela? Como ela se chamava mesmo? Elis Presley?

É fácil acharmos que somos da maneira que somos por nosso próprio mérito, mas a realidade é muito distante disso. Olhando de longe, podemos até ter uma imagem relativamente autêntica, mas quanto mais chegamos perto, é nítido que somos um mosaico com imagens dos nossos heróis e de pessoas que nos marcaram de uma forma ou de outra. Não merecem essas pessoas o nosso amor?

Amar quem nos fez sentir

Ever since you've walked right in the circle's been complete
I said goodbye to haunted rooms and faces in the street
To the courtyard of the jester, which is hidden from the sun
I love you more than ever and I haven't yet begun

— "Wedding Song", Planet Waves, 1974

O reflexo da vida pessoal de Dylan em sua obra é objeto de fascínio não só para mim mas para boa parte de seus fãs, em particular dos mais novos. Comentei certa vez com uma amiga que o álbum Blood on the Tracks ser considerado atualmente sua obra-prima (algo que de fato é, mas eu não diria que é seu melhor álbum) era uma expressão do sentimentalismo das novas gerações em detrimento das anteriores. Pessoas crescidas nos anos 90 notoriamente são menos sentimentais do que o pessoal mais novo, e acredito que isso reflete também na percepção geral que se tem da carreira de Dylan.

Blood on the Tracks é um dos melhores álbuns dele, não há dúvidas. E não vou argumentar que X ou Y é melhor, mas dizer que ele é o começo do fim de uma das histórias de amor mais bonitas do mundo real. BotT é um álbum que me fez sofrer e pensar mais sobre um divórcio que aconteceu vinte anos antes de eu nascer do que o divórcio dos meus próprios pais, eu não quero nunca tirar méritos desse álbum. "Idiot Wind" talvez seja minha música favorita. Eu amo esse álbum. Mas acredito que o clamor que ele recebe é fruto de um pessimismo intrínseco à minha geração, que tem um masoquismo sentimental gigantesco, em que criamos regras e não-me-toques para tornar a experiência íntima o mais sofrível o possível. É um álbum sofrido, ideal para pessoas que estão machucadas com a exposição de sua própria intimidade para alguém que talvez não merecesse, e talvez por isso se tranquem no subsolo para a eternidade.

Que tal olharmos para a gênese dessa história de amor, então?

Bringing it All Back Home não é lembrado por suas músicas de amor, mas pelo som cru e irreverente que adoro e talvez tenha definido minha pré-adolescência e parte da minha adolescência. Mas duas músicas sempre me pareceram um pouco desalinhadas do resto do álbum:

My love, she speaks like silence
Without ideals or violence
She doesn't have to say she's faithful,
Yet she's true, like ice, like fire

— "Love Minus Zero/No Limit", Bringing it All Back Home, 1965

Esse estrofe absolutamente lindo abre a segunda música a destoar desse álbum marcante, que todos mais lembram por ser metade elétrico e metade acústico, como se isso fosse importante. Não eram muitos que sabiam, mas em 1965, após superar sua antiga namorada Suze Rotolo, Dylan já tinha uma nova musa, a mulher mais marcante para sua carreira.

Certa vez, ao pensar sobre Crime e Castigo, um amigo me apontou os seguintes trechos:

No momento em que, na Siennáya, inclinou-se até o chão pela segunda vez, virou a cabeça para a esquerda e avistou Sônia a uns cinquenta passos. Ela se escondia dele através de umas barracas de madeira que ficavam na praça, logo, vinha-lhe acompanhando toda a marcha do calvário! Raskólnikov percebeu e compreendeu nesse instante, de uma vez por todas, que agora Sônia estava a seu lado para sempre e o acompanharia ainda que fosse ao fim do mundo, aonde quer que o destino o mandasse.[2]

Por alguma razão esteve particularmente mudo com Sônia todo esse tempo. Com o dinheiro que lhe deixara Svidrigáilov, ela se aprontara havia muito tempo e preparava-se para seguir o comboio de prisioneiros no qual ele também seria enviado. A esse respeito nunca fora mencionada uma única palavra entre ela e Raskólnikov; mas ambos sabiam que assim seria.[3]

E a maneira como ele descreveu foi que os personagens "speak like silence", como em "Love Minus Zero". Sônia nunca se aproxima exatamente de Raskólnikov enquanto ele faz a sofrida jornada até a polícia, quando vai se confessar, mas ainda assim estaria com ele sempre "aonde quer que o destino mandasse". O amor entre os dois personagens se manifesta de uma maneira profunda, com Raskólnikov não muito tempo antes percebendo na imagem de Sônia nada menos que a própria Virgem Maria e se atirando aos pés dela para que seus crimes sejam perdoados. Não existe amor mais sublime e, ainda que Bob Dylan não estivesse fazendo de forma alguma referência a Dostoiévski, a mesma ideia aparece aqui. A comunicação mais íntima não exige palavras, que frequentemente atrapalham nossa própria expressividade.

A outra canção a destoar em Bringing it All Back Home, um álbum frequentemente considerado cínico, é "She Belongs to Me", que apesar do título mostra muito mais um narrador sob feitiço de uma mulher. E novamente, o "não falar", ou no mínimo a comunicação não-verbal, está presente:

She wears an Egyptian ring that sparkles before she speaks
She's a hypnotist collector, you are a walking antique

— "She Belongs to Me", Bringing it All Back Home, 1965

De certa forma, tanto Dostoiévski quanto Dylan estão falando de uma espécie de "comunicação sublime" ou "comunicação superior" que passe por cima de qualquer explicação racional e de qualquer linguagem verbal. Sônia e Raskólnikov não sabiam como isso acontecia, mas acontecia. Dylan também não sabia como acontecia essa comunicação através do silêncio, mas sabia que acontecia.

Mas a linguagem falada obviamente importa.

O álbum Blonde on Blonde, que foi lançado no ano seguinte a Bringing it All Back Home, com uma terceira obra-prima espremida no meio, não costuma ser descrito como um álbum de amor, mas para mim ele é exatamente isso. Uma de suas músicas mais populares, que chegou a ter um cover do Skank no primeiro álbum da banda, é possivelmente a canção pop mais bonita que conheço.

Well, I returned to the Queen of Spades
To talk with my chambermaid
She knows it, I'm not afraid to look at her
She is good to me,
And there is nothing she doesn't see
She knows where I'd like to be, but it doesn't matter

— "I Want You", Blonde on Blonde, 1966

Em pouco mais de três minutos, algo relativamente incomum para o período em questão, Dylan conseguiu desenvolver uma história completa de um triângulo amoroso com imaginário incrivelmente bonito. Arrisco dizer que a sua Calíope desse período tenha sido a mais importante de sua carreira.

How is Sara holy?
I don't want to call her "a girl." I know it's very corny, but the only thing I can think of is, more or less, 'madonna-like'. [4]

Em 1965, Dylan se casou em escondido com Sara Lownds, recém saída de um divórcio, e arrisco dizer que esse foi o período em que amor mais estava presente, na sua forma usual, na carreira do cantor. A entrevista de Shelton em que ele descreve Sara como "madonna-like" (e não estou falando do ícone da esquerda neoliberal) é de pouco depois das primeiras notícias sobre seu casamento terem surgido. Nos anos 60, informação imediata, é bem possível que sequer fosse informação conhecida.

Essa descrição comparando sua esposa à mulher mais pura da humanidade, Maria mãe de Deus (de certa forma como Sônia Marmieladovna também é retratada em Crime e Castigo), não saiu de seu imaginário, porque também está presente em uma de suas canções mais icônicas, "Visions of Johanna", que apesar de ter sido escrita nessa época só seria lançada em junho do mesmo ano, três meses depois da entrevista.

And Madonna, she still has not showed
We see this empty cage now corrode
Where her cape on the stage once had flowed
The fiddler, he now steps to the road
He writes everything's been returned which was owed
On the back of a fish truck that loads
While my conscience explodes
The harmonicas play the skeleton keys in the rain
And these visions of Johanna are now all that remains

— "Visions of Johanna", Blonde on Blonde, 1966

Quando encontramos algo que com sua beleza nos acerta em cheio, como um raio, e nos paralisa completamente, o tempo para. Ficamos em estado contemplativo. "Visions of Johanna", música que nomeou Joanna Newsom, é isso: Johanna é o sublime, é o amor destilado sem igual, sem manchas, e na própria música é contrastado com o amor mundano, caído e vulgar de Louise.

Longe de ser o último exemplo de Blonde on Blonde, temos possivelmente minha música favorita dos anos 60 e explicitamente dedicada para sua nova esposa, "Sad-Eyed Lady of the Lowlands". Somos sortudos se sentimos alguma coisa que se aproxime do que é descrito em "Sad-Eyed Lady" em qualquer momento de nossas vidas, e Dylan pode viver isso de perto além de, claro, ter capacidade para colocar em palavras aquilo que eu ou você jamais conseguiríamos.

Algo que aprendi tentando escrever sobre meus heróis é que é muito mais difícil explicarmos por que gostamos de algo do que explicarmos por que não gostamos de algo. Falar mal é muito mais fácil do que exaltar. Tentei escrever algo sobre "Sad-Eyed Lady of the Lowlands" várias vezes, mas nunca foi suficiente e sempre apaguei. Às vezes, acho que finalmente tenho alguma boa ideia, mas ao reler vejo que não chega perto de fazer justiça. Algumas coisas são perfeitas da maneira que são, e tentar explicá-las não faz nada além de estragar a experiência.

Bob e Sara foram um belíssimo casal que não deu certo, muito por culpa do próprio Dylan. Mas não há dúvidas de que havia amor e havia beleza. Há quem diga que o espírito de Sara Lownds (ou Sara Dylan) nunca tenha ido embora da carreira do cantor, e aparecesse de vez em quando, como uma visita indigesta se manifestando em "Most of the Time" ou "Love Sick", lembrando daquilo que o cantor poderia ter tido mas não conseguiu manter.

Mas isso seria outra história. "Sad-Eyed Lady of the Lowlands" é sobre o amor mais límpido e genuíno que um homem pode sentir.

With your sheet like metal and your belt like lace,
And your deck of cards missing the jack and the ace,
And your basement clothes and your hollow face,
Who among them can think he could outguess you?
With your silhouette when the sunlight dims,
Into your eyes where the moonlight swims,
And your matchbook songs and your gypsy hymns,
Who among them would try to impress you?

— "Sad-Eyed Lady of the Lowlands", Blonde on Blonde, 1966

A mulher dos olhos tristes está acima da plebe — quem, deles, seria capaz de compreender ou sequer tocar algo tão puro? Com sua beleza e suas virtudes, ela redime o mundo. Em O Idiota, o rancoroso Ippolit ironiza uma ideia do personagem mais puro a passar por um romance russo, o protagonista Míshkin:

Senhores! — exclamou bem alto, dirigindo-se para o grupo inteiro — aqui o príncipe afirma que a Beleza salvará o mundo! Participo-lhes que a razão desta sua ideia tão radiosa advém do fato de estar ele apaixonado. [5]

O maior inimigo do amor é o cinismo e o rancor. Ippolit é um niilista que não vê sentido em uma vida que não durará pouco mais do que vinte anos, e por isso diminui qualquer romantismo. Mas, sinceramente, é impossível ler O Idiota e não ser completamente cativado pela figura tão santa que é o príncipe Míshkin. Ainda que o seu cérebro viciado em ironia, viciado em cinismo e conformismo, dê toda a razão do mundo para Ippolit, e se Míshkin estiver certo? Eu acho que estava. A beleza realmente salvará o mundo, uma pérola brilhante e bela consegue redimir a lama na qual ela se encontra. E a senhora dos olhos tristes, com seu rosto "saintlike", seus olhos de fumaça e sua voz que conjura sinos angelicais também consegue redimir seu ambiente lotado de vagabundos.

Amar a vida

Quando mais nos encontramos no buraco, mais passamos a apreciar as pequenas coisas do dia-a-dia que funcionam. Dado que tudo pode dar errado a qualquer instante, qual a chance de qualquer coisa estar dando certo? Até na destruição Dylan consegue encontrar beleza ("Changing of the Guards", "Bye and Bye").

Realmente acredito que boa parte da experiência do amadurecimento vem de passar por dificuldades e percebermos a trivialidade dos detalhes, das coisas que nos incomodavam tanto. Talvez no primeiro nadir desde o começo de sua carreira, o divórcio em 1977, que custou seus filhos e boa parte de sua fortuna, Dylan encontrou amor novamente em Deus, se convertendo ao Cristianismo no final dos anos 70. Apesar de ser um período injustamente criticado por seus fãs ("years ago they used to say I was a prophet. I used to say 'No, I'm not a prophet', hey say 'Yes you are, you're a prophet'. I said, 'No, it's not me'. They used to say 'You sure are a prophet'. They used to convince me I was a prophet. Now I come out and say Jesus Christ is the answer. They say, 'Bob Dylan's no prophet.' They just can't handle it."), é uma época extremamente bonita, só é preciso dar chance para encontrar essa beleza.

É verdade que boa parte das canções desse período são visões semi-apocalípticas (ou completamente apocalípticas), mas nem por isso é um período sem espaço para amor. Muito pelo contrário, o amor de Deus está presente em todos esses momentos. "I Believe in You" pode ser interpretada como amor a uma mulher ou como o amor a Deus, como pode ser e idealmente é o que acontece em um casamento cristão. Mas o exemplo ideal é "Every Grain of Sand".

Todos nós passamos por algo assim em algum momento. As coisas estão ruins, difíceis, e às vezes nos sentimos protagonistas de algum filme, algo parece estar acontecendo, mas a realidade se impõe. Não somos especiais. Ou será que não?

I hear the ancient footsteps like the motion of the sea
Sometimes I turn, there's someone there, other times it's only me
I am hanging in the balance of the reality of man
Like every sparrow falling, like every grain of sand

— "Every Grain of Sand", Shot of Love, 1981

De certa forma, essa forma de amor é a que sintetiza todas as outras. O eco dos passos da nossa cultura, citados nesse trecho acima, ainda são ouvíveis se nós prestarmos atenção, só precisamos estar abertos a ouvir. Não é apenas a música tradicional americana, não é apenas sua esposa e musa. Precisamos estar dispostos a nos apaixonar pela existência que Deus nos dá. E assim morre todo o ressentimento.

Não seremos felizes sempre, claro. Dylan sabe disso, inclusive em 1997 chegou a afirmar que só se sente feliz quando está no palco:

I’m mortified to be on the stage, but then again, it’s the only place where I’m happy.[6]

Mas apesar disso tudo podemos amar, e frequentemente as dificuldades são os momentos em que as conexões se tornam mais fortes. Na belíssima canção redentora de uma década praticamente inteira, "Brownsville Girl", Dylan canta: "Strange how people who suffer together have stronger connections than those who are most content". Não encontramos apenas no amor sublime por outra pessoa ou em Deus, encontramos amor onde estivermos dispostos a procurar. Até mesmo na carreira de uma figura aparentemente deprimida como Bob Dylan, que demonstrou isso desde o começo, cantando "Nobody Knows You When You're Down and Out" para Dave van Ronk, e segue até essa década em The Philosophy of Modern Song ou em músicas como "Murder Most Foul". Talvez por isso outro de meus heróis, Norm Macdonald, tenha escolhido um verso de Dylan para abrir seu livro.

Feliz aniversário, Robert Allen Zimmerman. Tenho certeza que sua existência tornou o mundo, que é um lugar realmente frio, um pouquinho mais caloroso.

[1] Rolling Stone, 21 de junho de 1984;
[2] Crime e Castigo, Editora 34, sexta parte, capítulo VIII;
[3] Crime e Castigo, Editora 34, epílogo, capítulo II;
[4] Entrevista com Robert Shelton, março de 1966;
[5] O Idiota, Martin Claret, terceira parte, capítulo V;
[6] The New York Times, 28 de setembro de 1997.